As fotografias do malinês Seydou Keïta produzidas entre as décadas de 1940 e 1960 trazem um olhar decolonial para o cotidiano na África.
Por Cibele Barbosa*
A África é o continente da fotografia de estúdio. Nos anos 1990, foram reveladas para o mundo fotografias que os africanos do Mali já conheciam bem: retratos de estúdio do fotógrafo Seydou Keïta. Na época, centenas de negativos estavam guardados com Keïta e foram “descobertos” por um pesquisador estrangeiro que os levou para Paris onde foi realizada uma exposição na Fundação Cartier. As fotografias ficaram ainda mais conhecidas na Bienal da Fotografia da cidade de Bamako, em 1994. Desde então, as imagens em preto-e-branco do fotógrafo malinês circularam o mundo em várias exposições. Uma delas, inclusive, ocorrida recentemente no Instituto Moreira Salles.
Nascido na cidade de Bamako, no Mali, em 1921, Keïta abriu, nos anos 1940, um estúdio fotográfico nesta cidade cujas atividades duraram até 1962, quando o fotógrafo foi trabalhar para o governo do Mali, que havia se tornado uma nação independente dos franceses em 1960.
As fotografias de Keïta nos aproximam dos cotidianos das famílias da África Ocidental, revelando uma visualidade bem diferente da que estamos acostumados quando o assunto é África. Durante muitos anos, fomos bombardeados por determinados tipos de fotografia que nos habituaram a “enxergar a África” pelas lentes do colonialismo europeu responsável por imagens “exóticas” com populações remotas e paisagens naturais, instituindo apenas um modo de visualização e percepção da África e dos africanos. Também as fotografias jornalísticas, embora tenham um importante papel de denúncia social, passaram a ser, em muito casos, o modo unilateral com o qual tivemos contato com imagens do continente africano: na maior parte dos casos, imagens de catástrofes naturais e humanas.
As imagens de Keïta abrem janelas para outros ângulos da vida social dos africanos das cidades do Oeste africano. A partir do seu trabalho, muitos outros fotógrafos espalhados em dezenas de estúdios por várias cidades, cuja época áurea se deu principalmente com as independências dos países entre os anos 1950 e 1970, tornaram-se conhecidos do público internacional.
Os belos retratos produzidos por Keïta espelham uma África urbana em transição. Os retratos, originalmente em pequeno formato(13x18cm), faziam parte do consumo de memórias afetivas. Muitos jovens, casais, homens e mulheres procuravam seu estúdio para serem retratados. Muitos gostavam de posar com objetos “modernos” como rádios e outros artefatos que concediam um status: bicicleta, moto, carro etc.
Keïta gostava de inserir tecidos com estampas geométricas como pano de fundo de suas fotos, muitas vezes em uma composição com as estampas da vestimenta dos fotografados.
As imagens retratadas pelo fotógrafo malinês presenteiam nossos olhos com imagens de africanos, feitas por um africano. Imagens de um período de esperanças, onde países da África se libertavam do domínio colonial e lançavam sonhos e projetos para o futuro. As fotos também são um modo de libertação: diferente dos padrões e convenções da fotografia nos tempos coloniais, os retratos de Keïta revelam a diversidade de trajes, de corpos, de gestos e de expressões de uma população onde tradição e modernidade se mesclam diante da câmera.
*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do Profsocio e coordenadora do projeto imageH.
Para citar esse texto:
BARBOSA, Cibele. A fotografia do cotidiano na África. ImageH,2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
Para saber mais:
LEENHARDT, Jacques;TITAN JR. Samuel(orgs). Seydou Keïta. São Paulo: IMS,2008.
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