Quem foi Saartjie Baartman? A construção do olhar sobre o corpo da mulher negra
Por Aline Oliveira*
Saartjie Baartman, em africânder (ou Sarah, em inglês), foi uma mulher negra, nascida ao norte do vale do rio Gamtoos na Colônia do Cabo Oriental, originária do povo coissã, da região que corresponde atualmente a África do Sul, Namíbia e ao sul de Angola.
Saartjie perdeu sua mãe na infância, foi criada pelo pai e foi retirada de sua comunidade em 1810. Levada para a Cidade do Cabo, partiu para a Europa como “serva” de agenciadores, em situação análoga à escravidão. Recém-chegada ao continente europeu, foi exibida em apresentações que a anunciavam como a Vênus Hottentote (termo depreciativo usado para se referir ao seu povo).
Nestas exibições, seu corpo era visto como exótico. A ênfase em seus traços, como tamanho e forma de suas nádegas e órgãos genitais, era acrescida de uma performance de canto e dança, representativa de sua origem.
Mas não apenas o viés exótico construía olhares sobre ela: sua exposição física tinha o intuito de despertar também sua exploração e objetificação sexual.
De passagem pela Inglaterra, onde já se popularizavam discursos sobre a abolição da escravatura, o caso de Saartjie foi levado ao tribunal em 1811. Sob pressão da opinião pública daquele país (homens brancos de classes abastadas, que eram em parte abolicionistas), decidiu-se proibir suas exibições públicas. Na França de 1814, porém, suas exibições continuaram com públicos cada vez maiores.
Com o passar dos anos, a perda de interesse por suas apresentações, a dificuldade com a língua francesa e a falta de dinheiro a levaram ao alcoolismo e, possivelmente, à prostituição como último recurso para sua sobrevivência.
Saartjie morreu na França em 1815 aos 26 anos, provavelmente por problemas decorrentes de sua situação social e econômica. Não suficiente, seu corpo foi utilizado para supostos estudos que defendiam a teoria absurda da condição de inferioridade e primitivismo de pessoas não-brancas. Posteriormente, seu esqueleto, órgãos genitais e cérebro foram separados do corpo e ficaram preservados no Musée de l’Homme até 1974.
A posse desses restos mortais foram contestados por lideranças africanas em diversas manifestações de repúdio, tendo um pedido de repatriação formalizado em 1994 pelo então presidente da África do Sul, Nelson Mandela.
Porém, apenas em 2002 as partes de seu corpo foram em fim levados de volta ao seu país de origem e enterrados no Vale do Rio Gamtoo, onde foi construído um memorial em sua homenagem.
A história de Saartjie tem sido utilizada na contemporaneidade como forma de denúncia da exploração e distorção da sexualidade de mulheres africanas. Dentre tantas produções, muitas delas são de caráter acadêmico, mas algumas são em formato de documentário audiovisual.
Em 2010, foi lançado nos cinemas um filme de ficção sobre a sua vida chamado Vênus Negra (Vénus Noire no original francês), de Abdellatif Kechiche. A obra contextualiza a questão da produção de narrativas sobre o outro, principalmente o outro exótico na Europa do século XIX.
Sinopse do filme:
Saartjie Baartman é representada como uma jovem mulher negra africana submetida à exploração de Caezar, um fazendeiro africâner. Saartjie é levada à Europa para ser explorada por ele e seu amigo Alexander Dunlop, com a promessa de liberdade. A jovem é exposta em apresentações encenadas com Caezar no intuito de representá-la em um contexto considerado "tradicional", exibindo o que seria sua natureza, seu corpo e seus gestos "selvagens", para públicos diversos a quem interessasse pagar.
Em Londres, apesar do sucesso das apresentações, a dupla Caezar e Dunlop é acusada de escravidão e, após desentendimentos, Caezar encontra um novo parceiro de negócios: Réaux, um domador de ursos. A nova dupla parte para França decidida a dar continuidade às diversas formas de exploração e violência direcionadas a Saartjie. Na França, encontram cientistas do Musée de l’homme interessados na anatomia única dos Hotentotes. A jovem chega a ser usada para os interesses dos cientistas, mas depois se recusa em continuar servido-os. Caezar a abandona sob as responsabilidades de Réaux, e este último decide prostituí-la. Nessa condição, ela sucumbe ao alcoolismo e sofre de depressão, infecções e outras doenças. Com sua morte, Réaux vende seu corpo para os cientistas. Só em 2002 os restos mortais de Saartjie Baarman é levada de volta à África do Sul através de negociações diplomáticas para ser enterrada.
Observe a imagem acima, de um trecho do filme Vênus Negra. A personagem está performando gestos de sua cultura de origem para um público que a enxerga como exótica. Ela é o “outro” que não “pertence” ao meio que a assiste e que com ela se diverte. Porém, a apropriação deste corpo exótico, enquanto mercadoria e objeto de desejo, torna-a pertencente aos que se consideram de uma cultura “superior”, ou mesmo, superior como indivíduo.
Saartjie, foi objetificada, erotizada, violentada de todas as formas para o prazer e o privilégio de terceiros. As representações imagéticas de Saartjie, estão sempre acompanhadas de um discurso do “outro”, que supostamente justificaria atos de violência e exploração desse corpo negro. Um discurso não apenas de afirmação de suposta superioridade a tal corpo, mas que afirma sua natureza e propósito a serviço e salvação do homem branco.
Agora, imagine esse discurso sendo cada vez mais elaborado e estruturado por tantos anos? Quais as consequências disso numa sociedade e em suas formas de organização e de relações?
Após anos de exploração, Saartjie sucumbe às enfermidades sociais, físicas e mentais que lhe foram impostas naquele meio em que foi inserida. O corpo da mulher negra —sendo fetichizado como exótico, selvagem e sexualizado de diversas maneiras por meio da construção e representação social de sua imagem — leva-nos a refletir sobre a manutenção e a persistência desse olhar no modelamento de como outras mulheres negras são percebidas e representadas até os nossos dias.
Quais as possibilidades e realidades na vida de uma mulher negra?
*Aline Oliveira tem bacharelado em ciências sociais. É mestra em extensão rural e desenvolvimento local. Atualmente está licenciando-se em História. (Todos os cursos pela UFRPE).
Para citar esse texto:
OLIVEIRA, Aline. A morte da Vênus Negra. ImageH,2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
Para saber mais:
Comments