Como duas pinturas, uma gravura e dois livros podem nos ajudar a melhor compreender os "surreais" ritmos de tempo e o cansaço da sociedade contemporânea
Por Mércia Passos*
Vivemos um momento em que a velocidade das informações, os avanços da tecnologia e a efemeridade das relações sociais foram mudanças introjetadas em nossa existência e naturalizadas em nosso cotidiano. Da mesma forma, essa urgência no agir e a dificuldade cada vez maior no gerenciamento do tempo têm relação direta com o trabalho.
Faço aqui uma análise das nossas interações sociais, tendo como referência a “sociedade 24/7” proposta por Jonathan Crary em 24/7: O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (2015) e por Byung Chul-Han em A Sociedade do Cansaço (2010).
Apresento minhas reflexões sobre a sociedade 24/7 descrita por Crary utilizando dois quadros de Salvador Dali pintados na década de 1930 que retratavam as transformações sociais referentes à vida humana e a sua relação com o tempo.
Em A Persistência da Memória posso observar o tempo — fluido, urgente, efêmero — que se dissolve e a vida que se vai. Assim percebo que a provocação proposta pelo quadro se dá pela complexa relação entre o ser e o tempo que já existia naquela época . Para mim, isso é um reflexo do fato de que o indivíduo não se apercebe do tempo que se vai e se dissolve, e que escorre em suas mãos, pois está mais preocupado com as relações de produção e consumo em escala 24/7.
Já na obra O Sono, o pintor chama atenção para uma sociedade que sente dificuldade em dormir. Um grande rosto escorado por muletas mostra o quanto é sensível o sono humano e como bastaria que uma delas saísse do apoio para o rosto ir ao chão.
Desde a Revolução Industrial os indivíduos vêm se adaptando a uma nova forma de produção ao passo que deixam de ser donos de sua rotina diária. Na década de 50, com o surgimento dos hipermercados abertos 24 horas na Europa, as relações de consumo também começaram a mudar. No Brasil, esse modelo chega na década de 80 transformando o perfil de consumo do país. Com a promessa da praticidade, os hipermercados sugerem um tom de normalidade ao capitalismo 24/7.
A urgência em produzir, estar conectado e antenado ao resto do mundo nos remete a essa realidade e a um mecanismo de controle social que nos conduz à falta de controle sobre nós mesmos. Na análise sobre A Sociedade do Cansaço, de Chul-Han, utilizo como referência a pintura do artista sueco Sebastian Ericksson.
Considerado um dos maiores artistas surrealistas da atualidade, suas obras nos remetem ao momento atual descrito por Chul-Han. Percebe-se na ilustração um indivíduo perdido dentro de si, o que nos faz sentir uma angústia, como de um grito “silencioso” de socorro.
Assim é a sociedade do cansaço. A busca incessante pela própria superação faz com que o indivíduo se sufoque dentro de seu próprio vazio causado pela ambição e pela tentativa de eficiência constante. O indivíduo, agora, já não está mais preso a uma sociedade de controle, como apresentava Foucault, mas à busca de seu próprio desempenho individual, sua autonomia.
Essa busca por destaque causa no indivíduo o que o autor chama de violência neural. Vivemos em uma sociedade doente em que existe autopunição pela falta de desempenho o que gera depressão e outros males psíquicos. Percebe-se, nesse novo modelo de sociedade que, se o indivíduo produz, existe uma autocobrança para produzir ainda mais; e se ele não produz, a cobrança parte da sociedade sobre si.
Vivemos a falsa impressão de que quanto mais ativo se é, mais livre seremos — quando, na verdade, vamos nos tornando escravos de nós mesmos.
Somos uma sociedade certamente ativa em modo 24/7, mas também vivemos esgotados pelo cansaço.
* Mércia Ferreira Braz Passos é professora da Escola Técnica Estadual Jurandir Bezerra Lins – Igarassu/PE e discente do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (Profsocio/Fundaj).
Para citar esse texto: PASSOS, Mércia Ferreira Braz. A sociedade 24/7 e as imagens do cansaço: um reflexo da nossa vida cotidiana. ImageH,2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais:
CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: UBU, 2016.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2. ed. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017. 128 p.
Comments