Ao retomar passagens escritas por Anne Frank em seu diário, enquanto esteve escondida na Holanda durante à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o documentário traz uma perspectiva histórica e de homenagem, mesclando o que foi vivido por Anne e seus familiares com os relatos de cinco mulheres sobreviventes ao Holocausto: Arianna Szörényi, Andra Bucci, Helga Weiss, Sarah Lichtsztejn-Montard e Tatiana Bucci.
Por Ellen Cristina*
Narrado pela atriz Helen Mirren, o documentário Anne Frank – Vidas paralelas compartilha a memória do horror da guerra e suas consequências reais para a vida de milhões de pessoas, entre eles pessoas com deficiência física e mental , ciganos, soviéticos, civis em geral e principalmente os judeus. O produto da Netflix lançado em 2019, foi dirigido por Sabina Fedeli e Anna Migotto, e reflete a relevância de se recontar histórias a partir dos depoimentos da realidade dos seres sociais, não somente por seu valor histórico, mas sim espelhando o que nossos jovens recebem de herança e o modo como eles constroem suas memórias atuais.
Gravado em um ambiente que reconstrói e simula o quarto de Anne no “anexo” – seu esconderijo e de mais sete pessoas ao longo de mais de 2 anos, para fugir da perseguição nazista – o documentário narra passagens de dor, medo, alegria e esperança que Anne vivenciou e eternizou ao escrever em seu diário. Assim, com uma produção audiovisual rica e contribuições de historiadores e estudiosos sobre o tema, o documentário permite que a memória de Anne seja amplificada, contando como uma garota judia viu sua vida mudar no início da adolescência, em decorrência da política racista e violenta empregada pelo III Reich alemão, refugiando-se na Holanda, com seu pai, mãe e irmã (Otto, Edith e Margot Frank, respectivamente).
No entanto, o país que inicialmente serviu de refúgio também foi tomado e
invadido pelas forças alemãs no ano de 1940. E é através das intensivas
restrições e violências ocorridas, que a família passa a viver secretamente em
uma casa anexa nos confins do prédio comercial em que Otto Frank possuía
sua empresa, em Amsterdã, acobertados por funcionários e amigos. Nesse local, Anne se desenvolveu, viveu inúmeros dilemas, situações cômicas e trágicas, nos
ofertando uma narração ímpar da guerra e suas implicações, além dos conflitos
humanos (internos e sociais) muito distintos e pessoais que ocorreram no anexo
secreto, de modo que o seu diário se tornou um grande documento histórico
mundia e a sua figura um ser representativo quando falamos da Segunda
Guerra Mundial.
Escrever em seu diário, endereçado para sua amiga imaginária “Kitty”, é o que
permitiu Anne extravasar e suportar todo o misto de sentimentos que foi estar
isolada do mundo, exposta constantemente à morte:
“Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta.
Mas me pergunto: algum dia escreverei coisa importante? Virei a ser
jornalista ou escritora? Espero que sim, espero de todo o meu coração! Ao
escrever, sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os meus ideais, as
minhas fantasias.” (FRANK, P. 149).
A escrita externava suas dores, seus sonhos, amores, defeitos, planos, análises da situação econômica e política vigente, além dos conflitos e o cotidiano da vida no anexo. Esse misto de sentimentos e vivências em muito se assemelham ao relato das cinco sobreviventes que se fazem presentes no documentário. Arianna Szörényi é mais uma vítima dos campos de concentração, italiana de família mista (pai judaico e mãe católica), foi deportada aos 11 anos e separada da família. Sobreviveu a Auschwitz, mas os traumas vivenciados a submeteram ao
silêncio e medo constante, e é através das palavras, em um momento posterior à
guerra, que ela encontra o acalento para amenizar sua dor e alertar sobre os
horrores do Holocausto, relatando sua experiência e mantendo viva a história
das vítimas fatais.
Helga Weiss também encontra na arte, através de seus desenhos que remetiam ao cotidiano antes da guerra, um motivo para continuar; sobrevivente após ser deportada em 1941 e resistir a quatro campos de concentração, ela possui os desenhos que fez durante esse período e de sua infância, recordando um tempo de paz. A música, embora em um momento posterior, segue como um movimento de homenagem e luto: Francesca Dego utiliza a música clássica para recordar seusparentes que partiram e romper com o silêncio, fazendo arte com a dor.
Exercendo sua homenagem e resgate de memórias, o documentário exibe
várias passagens da guerra e das cidades que foram palco dos principais
campos de concentração, chamando a atenção ao ter uma jovem (a atriz Gengher Gatti) visitando os memoriais do Holocausto pela Europa. Em todas as cenas encontramos um ar reflexivo e silencioso sobre o papel dos memoriais, onde a jovem eterniza suas visitas através de posts em redes sociais com imagens do que ela vê e reflexões que lhe afligem ao estar onde tudo aconteceu.
Nessas passagens somos delicadamente convidados a refletir sobre o legado das consequências da Segunda Guerra Mundial, voltando nosso olhar para as vítimas e sobre a história, de modo que não deixemos esquecer o sofrimento passado e que sejamos ativos na construção e reconstrução de memórias.
O sociólogo Pierre Bourdieu, em seus escritos póstumos Esboço de autoanálise
– 2005, reconhece o papel da trajetória da vida enquanto ferramenta para
compreender nossa posição no mundo, pois é através das nossas experiências que somos formados; logo reconhece a importância da trajetória pessoal quando vamos estudar sobre algum autor e sua obra. Ora, este pensamento também nos
é favorável. Assim, podemos refletir sobre nossa atuação na produção e
consumo da história, nos questionando o quanto e como nós registramos o nosso cotidiano, nossas inquietações pessoais e sociais. Com o uso das redes sociais, podemos ser produtores ativos nesse processo.
Para a geração em que tudo é intermediado pelo uso do celular, seria possível
didaticamente analisar junto com os alunos esse processo de externalizar nossos
sentimentos no mundo virtual, através de Twitter ou Instagram, e quais as
implicações dessa ação nos dias de hoje.
Contar histórias pode fazer parte da dinâmica de uma proposta de atividade com os estudantes do ensino médio, assistir ao documentário e pôr em prática as memórias das realidades de nossos estudantes, estimulando a escrita de diários, de modo que eles entendam suas relações no mundo, círculos sociais, sentimentos internos e interação com a história mundial – atual e passada, fazendo um movimento de análise da própria história que pode ser compartilhada em sala, agregando diversas percepções e vivências de mundo ao corpo discente e docente. Além da possibilidade de conhecer seu próprio aluno, é um caminho para o diálogo entre as percepções individuais e os questionamentos sociológicos, estimulando a imaginação sociológica e a reflexão crítica acerca das trajetórias narradas.
O documentário possui classificação para maiores de 14 anos e se encontra disponível na Netflix e no YouTube - em língua inglesa.
*Ellen Cristina é estudante de Licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco.
Para citar esse texto:
CRISTINA, Ellen. Na sala de aula: Anne Frank - Vidas paralelas. 2022. ImageH. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
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