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As estátuas são imortais? Parte I.

O incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato nos leva à reflexão de que não há e nem deve haver história que permaneça no mesmo lugar


Por Cibele Barbosa*


Estátua de Borba Gato em chamas. Foto: Reprodução/ TV Globo

As imagens, históricas ou não, imateriais ou materializadas em monumentos e objetos, são nômades: elas são alvo de atenção ou de esquecimento, de maior ou menor valor, a depender dos atores e cenários políticos, dos elementos culturais, das relações de poder e das forças sociais atuantes nas dinâmicas do ver e do ser visto.


Tratando de monumentos, cujo propósito é serem vistos pelo maior número possível de pessoas, tomemos, como exemplo, o caso da estátua do bandeirante Borba Gato que, nas últimas semanas, foi alvo de acalorado debate na mídia em razão de uma tentativa de incêndio provocada por ativistas em São Paulo.


Muitos textos e comentários se apressaram em criticar o ato afirmando que não se pode “apagar” a História. Afinal, Manuel de Borba Gato (1649-1718) existiu e viveu em um tempo no qual não poderia ser condenado sob os valores e critérios humanistas dos dias de hoje. Por essa razão, não caberia julgar-lhe os extermínios e assassinatos de índios e negros. Esse ponto de vista, porém, guarda alguns equívocos . Primeiramente, porque esse argumento parte da ideia de uma história essencialista, una, reificada e petrificada no tempo.


O que está em jogo na discussão atual não é a existência ou não do personagem histórico, mas a reflexão sobre a manutenção ou não de um determinado (e datado) tipo de homenagem, da continuidade de uma versão hegemônica e parcial da história. Não se pode apagar os fatos e personagens do passado, é certo, mas precisamos discutir o que esse passado representa no presente e como lidamos com ele.


Em outros termos, a pergunta que fica é a seguinte: qual a visibilidade que deve ser oferecida a essa história do Borba Gato? Como já discutia o célebre historiador Marc Bloch no seu Apologia da história, para interpretar os documentos, para formular corretamente as perguntas acerca do passado, “para até mesmo fazer uma ideia deles, uma primeira condição teve que ser cumprida: observar, analisar a paisagem de hoje”. O modo como remexemos o passado, como o olhamos ou como nos dedicamos a estudá-lo parte de disposições, desejos, intenções, afetos e inquietações do presente. Essa resposta leva, porém, a uma outra pergunta: afinal, quem tem o poder de inquirir o passado e desvelar suas histórias?


Antes de mais nada, é preciso ter em mente que não existe um fato histórico puro, perdido no passado. O ato de pesquisar e escrever sobre um tema histórico parte de iniciativas nascidas na " paisagem de hoje". Por essa razão, não se trata de discutir a história de Borba Gato per si, mas os sentidos e interpretações que a sociedade atribuiu a essa história tanto nos textos quanto nas imagens. Em cada época, flutuam diferentes perguntas e respostas sobre o passado. Não há como olhar para trás sem as lentes do presente. Não existem histórias intocáveis. Isso não implica que cada um interprete e interpele o passado como bem entender, em um relativismo ingênuo, sem critério algum. O que se está querendo dizer com essa afirmação é que o refinamento das pesquisas, o modo como são formuladas as perguntas para os documentos, o prisma e o viés pelos quais são interpretados e observados personagens e histórias, tudo isso está sujeito às mudanças epistemológicas, sociais e políticas de cada época. Em tempos onde direitos são conquistados, é possível olhar para a história de Borba Gato com as mesmas lentes de outrora, focadas no culto aos homens brancos, colonizadores e exterminadores?

Quando passamos para o campo do patrimônio, é preciso pensar que aí também reside uma história. Ou seja, a transformação de personagens ou eventos em monumentos, como as estátuas, possui uma história própria: foi realizada com finalidades e contingências especificas deste ou daquele momento.


No caso da estátua de Borba Gato, ela foi encomendada para celebrar o IV Centenário do bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Foi realizada por Júlio Guerra, um artista do bairro que possui outras estátuas na região. O artista se declarou descendente longínquo de Borba Gato. A estátua, com 40 toneladas e 10 metros de altura, ficou pronta em 1963, porém começou a ser realizada em 1957.


Ela parte de uma construção identitária comum nos manuais escolares de história da época e que se consolidou como um “lugar de memória” de São Paulo: a heroicização dos bandeirantes. Nomes de ruas, de rodovias (Bandeirantes) e monumentos marcam esse imaginário construído sobre a Paulicéia.


Há um complexo de visualidade que, de forma articulada, constrói um imaginário sobre determinados eventos históricos. Ou seja, fomos acostumados, ou melhor, condicionados a “ver” os fatos por uma determinada via. De modo geral , ouvimos que os bandeirantes ampliaram as fronteiras e adentraram no interior do país, que foram desbravadores e...ponto final. A extrema violência, a escravização e o extermínio, quando são citados, entram nos textos como mero detalhe, quase como um obstáculo. As dores e o rastro de sangue deixados nos caminhos e fronteiras se diluem em meio a uma história oficial transmitida com a mesma falta de empatia e menosprezo aos corpos negros e indígenas que encontramos em muitos discursos voltados para essas mesmas populações e seus descendentes ainda nos dias de hoje.


As estátuas têm um papel impositivo no seu entorno: dada a sua presença física, elas nos impelem a internalizar uma determinada ideia sobre um fato. Por essa razão, é preciso inquirir sobre as políticas das imagens às quais estamos submetidos. Assim como os monumentos possuem uma história, a construção da narrativa histórica (historiografia), também tem uma. Historicizar o modo como se escreve a História consiste em observar como, ao longo do tempo, os recortes interpretativos foram conferidos aos fatos históricos, como se processou a eleição do personagem A ou B para o “panteão” da História oficial, quais os critérios de escolha das biografias e fatos históricos que foram parar nas bancas escolares.


O fato é que, por longos anos, estendendo-se até mesmo aos dias de hoje, poucos tinham o poder de decidir qual história ou personagem deveria ser considerado “heroico” ou “relevante”. Os critérios, em muitos casos, seguiam as linhas mestras do recorte racial, de classe, de gênero, de geração, de capital cultural, para não dizer outros. Quantos foram os esquecidos da História? Quantos grupos não puderam ser contemplados nem reconhecidos nos monumentos? Quantas dores coletivas foram “colocadas para debaixo do tapete” no intuito de possibilitar a fabricação de um “herói”? Quantos genocídios e assassinatos foram ocultados sob o manto destes “heróis nacionais”? Em tempos pós-coloniais, onde grupos subalternizados lutam por mais voz e representatividade, onde as feridas do passado ainda estão abertas, é cabível manter os mesmos modelos, padrões e valores hegemônicos materializados em estátuas e monumentos?


A estátua de Borba Gato pode, sim, sair do lugar: tanto do lugar insuflado na história oficial quanto da praça onde está. Em um museu, a estátua ocuparia outro lugar. Estaria em um espaço contextualizado, mais informativo, no qual se tornaria uma peça testemunhal de um modo de representação da história que perdurou por muitos anos, mas que não está imune à crítica nem à mudança. Em um museu, no lugar da homenagem, estaria a referência a um homem de outros tempos cuja história não pode ser contada sem mostrar as marcas de sangue deixadas em suas pegadas.


*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do Profsocio e coordenadora do projeto imageH.


 

Para citar esse texto:

BARBOSA, Cibele. As estátuas são imortais? Parte I. ImageH,2021. Disponível em: whttps://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades

 

Para saber mais:

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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