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E quando as imagens nos dizem nada?

A partir da reflexão sobre três cascas de bétulas recolhidas em Birkenau, na Polônia, Georges Didi-Huberman nos convida a olhar para as coisas como um arqueólogo, buscando espaços soterrados e tempos esboroados.


Por Guilherme Falcão*


Em 2011, o historiador e crítico de arte Georges Didi-Huberman visitou o complexo de campos de concentração em Auschwitz, na Polônia. Para refletir sobre a permanência da memória grotesca da sistematização e racionalização da morte ocorridas ali, o francês descendente de judeu buscou não os discursos e imagens catalogadas pelas direções dos memoriais, museus e bibliotecas construídas onde anteriormente funcionavam os campos de concentração, mas nos locais onde (aparentemente) não havia discursos ou imagens alguma.


Os relatos dessa experiência foram escritos no livro Cascas, que se inicia com a observação de três cascas de bétulas, recolhidas no Campo de Auschwitz II - Birkenau. A partir da análise dessas três "lascas do tempo", Didi-Huberman tenta ler as coisas não escritas e elabora uma série de considerações sobre a transformação do que ele conceituou como “lugares de barbárie” (os antigos campos de concentração) em “lugares de cultura” (museus de Estado, bibliotecas e memoriais). A contemplação dessas "cascas", agora como figura de linguagem para pedaços arrancados, tem o potencial de nos ajudar a refazer um percurso histórico fundamental.


Foto das cascas de bétulas recolhidas por Georges Didi-Huberman em sua visita a Auschwitz II - Birkenau, em 2011. Imagem extraída do livro.

As tentativas, pelos nazistas, de - literalmente - dinamitar todas as provas de seus experimentos nefastos não apagaram todos os registros do que aconteceu ali. Além disso, mesmo com todo esforço da ressignificar o antigo "lugar de barbárie" num atual "lugar de cultura" (com reformas estruturais e limitações de circulação do público pelos espaços), um “olhar arqueológico” revelou a Didi-Huberman que a memória da incivilização construída ainda está presente no local: é possível encontrar ossadas das pessoas assassinadas no local e o processo de putrefação dos cadáveres, mesmo que soterrados por camadas de concreto, vez por outra se faz notar.


Sobre tudo isso, o que fica para nós como lição é que não devemos renegar a anterior condição da barbárie de qualquer fato histórico considerado degradante, mas buscar entender o que é esse “lugar de conflitos” chamado cultura. Como diz o autor:

Todos os centros culturais - bibliotecas, salas de cinema, museus -, desnecessário dizer, podem contribuir no mundo inteiro para construir uma memória de Auschwitz. Mas o que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?

Toda reflexão de Didi-Huberman neste livro é executada a partir de relações entre a atual situação memorialista do campos de concentração e o seu passado atroz. O que permanece como algo a não ser visto é o que chama a atenção do filósofo para tratar da memória e da continuidade cultural desse “antigo” “lugar de barbárie”.


Algumas perguntas que se seguem aparentam ser inevitáveis: o que devemos carregar como mensagem ao depararmos com tantas ruínas, locais ressignificados e silêncios suspeitos? Quais falas devem ser selecionadas para melhor passar nossa mensagem? O que deve ser observado ao olharmos para um lugar como este?


No livro, o autor nos apresenta um exemplo interessantíssimo, que simboliza bastante a ideia de que há algo para ser visto, mesmo quando as imagens nos dizem "nada". O caso é o seguinte: um soldado da Sonderkommando (unidade de trabalho formada pelos próprios prisioneiros) tirou quatro fotografias que constituem, até hoje, os únicos registros visuais das operações de asfixia em massa no sítio do Crematório V (um dos crematórios em que se instalavam as câmaras de gás, onde os nazistas executavam seus prisioneiros). Como o Crematório V foi dinamitado pelos nazistas, numa tentativa de "queima de arquivo", antes da chegada dos soldados soviéticos em 1945, o que nos restou da construção foram apenas ruínas e as quatro fotografias do membro da Sonderkommando. Entre as quatro imagens registradas pelo soldado, apenas três foram escolhidas pela direção do memorial para retratar aquele momento. A quarta foto, tirada sem tanta precisão num momento em que o soldado retirava a câmera fotográfica escondida de um balde, que poderia dizer aos visitantes tanto quanto (e talvez ainda mais do que) qualquer outra foto bem focada e ajustada dessa mesma situação, foi rejeitada pela curadoria do memorial.


Reprodução das fotografias tiradas pelo soldado do Sonderkommando. Aqui podemos ver a presença das três fotos. Imagem extraída do livro.

Apesar de a quarta foto ter sido considerada inútil para o idealizador do “lugar de memória”, porque não se vê ninguém nessa imagem, ou porque não há nenhum conteúdo explícito, precisamos notar que não é necessário uma realidade claramente visível - ou legível - para que a mensagem seja passada. O soldado precisou, como disse o autor, “se esconder para ver” e essa conduta clandestina nos diz muito sobre a realidade dos campos de concentração. Por que, afinal, suprimir essa imagem? Será que o seu conteúdo borrado e nervoso não reflete exatamente a vida borrada e nervosa de um encarcerado, forçado a trabalhar nos campos de concentração? O testemunho dessa foto-rasura é o do perigo, ou, como disse Didi-Huberman: “o vital perigo de presenciar o que acontecia em Birkenau”. Ela devia, tanto quanto as outras três, ter sido apresentada aos visitantes.


Ainda na tentativa de salientar a importância de qualquer permanência de memória que seja, os testemunhos desesperados, as impressões fugazes, irrefletidas, são elevadas ao grau de tão mais importantes quanto fatos declarados - assim como a reprodução desfocada e clandestina do fotógrafo-soldado é tão mais importante quanto as imagens documentais, muito bem preparadas. O relato, nesse sentido, está presente na realidade que se alinha ao ocorrido e não necessariamente ao fato narrado refletidamente. Ou seja, uma imagem que (aparentemente) nos diz nada, vocifera o que era estar naquele lugar.


Precisamos de um olhar que nos faça ver que as coisas nos olham a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados. Em casos para além deste narrado, é importante forçarmos a vista para que sejamos afetados pelas coisas que observamos: ser encarado de volta pelo abismo é uma provação investigativa: precisamos saber o que nos olha antes de revelar o que olhamos. Como diz Didi-Huberman, “a arqueologia defende que os solos falam conosco precisamente na medida em que sobrevivem, e sobrevivem na medida em que os consideramos neutros, insignificantes, sem consequências. É justamente por isso que merecem nossa atenção. Eles são a casca da história”.


Foto do chão do Crematório V, em Auschwitz II – Birkenau, tirada pelo autor, em 2011. Imagem extraída do livro.

É por isso que não devemos desprezar a superfície e o que cai das coisas. As ruínas de um lugar pode até não ser aquele lugar em sua intenção original de uso, mas ainda assim elas nos dizem coisas, nos contam histórias. A “casca”, utilizada por Didi-Huberman como metáfora para representar a impureza que advém da coisa em si, não é algo que pode ser descartado em uma análise.


O autor, que decidiu fotografar qualquer coisa que via pela frente, se utilizou de cada uma dessas imagens “mal feitas” para refletir sobre o horror que representou aquele lugar num determinado momento da história ocidental. Ele tensiona e nos ajuda a imaginar o inimaginável e a ver coisas onde, num primeiro momento, parecia haver nada.


Foto das ruínas do Crematório V. Imagem extraída do livro.

Didi-Huberman ignora as guias e placas de proibição dos memoriais e museus do holocausto e nos escreve este importante convite. Há, ainda que não percebamos numa primeira percepção, muita construção nos escombros e muito barulho no silêncio. As reflexões do autor nos levam a pensar que as imagens, por si, não possuem um significado intrínseco e a interpretação que fazemos dela é o que verdadeiramente importa.


*Guilherme Falcão é bacharel em Ciências Sociais, bolsista multiHlab/FACEPE e integrante do imageH.


 

Para citar esse texto:


FALCÃO, Guilherme. E quando as imagens nos dizem nada?. ImageH, 2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.

 

Para saber mais:


DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução de André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017 (1ª Edição).



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