De “caderno visual” de campo até documento histórico do colonialismo, muitas foram as funções da fotografia no trabalho sociológico de Pierre Bourdieu.
Por Gabriel Peters*
Sociologia e fotografia
Quando pensamos a relação entre sociologia e fotografia, duas possibilidades de reflexão e pesquisa se apresentam de imediato.
Por um lado, temos o caminho de uma sociologia da fotografia, um caminho que é, ele próprio, capaz de se dividir em múltiplas vias de investigação, tais quais o estudo de como as práticas fotográficas variam segundo as classes sociais (Bourdieu, 1965) ou, ainda, do papel de fotografias e outras representações gráficas na formação de estereótipos de gênero, raça, etnicidade, nacionalidade, sexualidade e assim por diante (p.ex., Fanon, 2008: cap.5).
Os exemplos elencados já indicam que a relação entre a fotografia e seu contexto social é de interdeterminação ou influência mútua: se o ambiente societário molda profundamente as práticas e conteúdos fotográficos, a fotografia, por seu turno, não é mero efeito de forças sócio-históricas, mas um fator causal importante nos próprios processos pelos quais as sociedades se reproduzem e se transformam. Assim, a relação entre o cenário societário (econômico, político, cultural etc.), de um lado, e a produção e circulação de fotografias, de outro, é de mão dupla. Para retornar a um dos exemplos anteriores: se é verdade que ambientes culturais racistas e sexistas tendem a encorajar a produção e a circulação de fotografias dotadas desses traços, também é verdade que estas próprias fotografias podem tornar-se (e frequentemente se tornam) mecanismos simbólicos que contribuem para a reprodução histórica do racismo e do sexismo.
Por outro lado, para além de uma sociologia da fotografia, podemos pensar também nas possibilidades da fotografia não tanto como tema ou objeto de pesquisa, mas como recurso ou instrumento de conhecimento sociológico: a fotografia como parte dos meios disponíveis pelos quais a sociologia explica a vida em sociedade, bem como disponibiliza seus achados para um público interessado. Ainda que nenhum uso da fotografia por cientistas sociais possa prescindir de uma reflexão crítica sobre seus potenciais abusos, os quais incluem as maneiras pelas quais fotografias são costumeiramente mobilizadas para desinformar e enganar, diversos autores e autoras têm chamado a atenção para os benefícios que uma utilização responsável da fotografia pode trazer à pesquisa sociológica.
No presente ensaio, discutirei alguns desses benefícios a partir de um acervo de cerca de 150 fotografias feitas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) em suas pesquisas etnográficas na Argélia da segunda metade da década de 1950, fotografias divulgadas no livro Images d’Algérie (2003) e na sua tradução anglófona Picturing Algeria (2012). Embora o livro não traga um comentário circunstanciado sobre cada foto nele mostrada, a obra contém uma entrevista de Bourdieu com o Professor da Universidade de Genebra Franz Schultheis, entrevista que propicia ao sociólogo francês uma reflexão sobre o “uso da fotografia para […] a pesquisa etnográfica de campo e os estudos sociológicos em situação” (2012: 8).
Das “anotações” visuais ao testemunho do colonialismo: Bourdieu, fotógrafo
Em primeiro lugar, as fotos tinham para o autor um papel documental ou de registro. Na medida em que Bourdieu conduzia suas investigações em situações sociais que nem sempre permitiam o recurso à escrita de notas, suas fotografias frequentemente adquiriam o papel de “anotações visuais” às quais ele podia retornar mais tarde, quando as analisava com mais vagar e cuidado. Dentre as “urgências etnográficas” que muitas vezes impediam o recurso de Bourdieu ao caderno de campo convencional estavam, com efeito, as consequências de uma escalada da violência na guerra entre o exército francês e as forças anticoloniais argelinas – por exemplo, ter de “avançar […] por uma estrada entupida, no trajeto inteiro, por carcaças de carros carbonizados” com “o estrondo das metralhadoras” ao fundo (Bourdieu, 2005: 77).
Mesmo aqueles cientistas sociais que não fazem pesquisa em cenários tão dramáticos ainda têm a ganhar, entretanto, com o exercício realizado por Bourdieu: observar detalhes de fotos tiradas em campo pode dar ensejo a uma experiência “proustiana” de reativação de memórias relevantes quanto às pessoas e cenas estudadas, memórias mais facilmente conversíveis, assim, em um relato escrito da pesquisa (p.ex., no “verdadeiro” caderno de campo ou – por que não? – já na forma de parágrafos da monografia/dissertação/tese/artigo/livro).
A prática de tirar fotos para analisá-las em detalhe posteriormente pode exercer, ademais, uma função pedagógica: sensibilizar o olhar do/a pesquisador/a à riqueza interna dos contextos de suas investigações empíricas, treinando-o/a para a percepção de detalhes sociologicamente relevantes que teriam, de outro modo, escapado à sua atenção. No caso de Bourdieu, isto implica afirmar não apenas que suas fotografias “revelam” sua competência como pesquisador de campo, mas que a prática de tirar fotografias contribuiu para o cultivo dessa própria competência.
Bourdieu também sustenta que suas fotografias também funcionaram, na prática da pesquisa, como moedas de aproximação, comunicação e troca entre ele e os sujeitos pesquisados, já que muitos deles estavam interessados, continua o autor, em serem fotografados, fosse pela intenção de obterem retratos de si próprios, fosse pela aspiração a terem suas difíceis circunstâncias de vida divulgadas para uma audiência interessada (p.ex., críticos das violências coloniais praticadas pelo governo francês na Argélia).
Por meio da condensação de significados propiciada pela imagem, diz Bourdieu elencando uma terceira função metodológica da fotografia, as fotos também ajudavam a sintetizar e comunicar diagnósticos sociológicos complexos, sobretudo no tocante a “realidades dissonantes” (2012: 13). A imagem abaixo é um exemplo:
Além de chacoalhar associações estereotípicas entre o tradicional e o moderno, como a tendência a atrelar mulheres de burca a uma conduta de passividade e/ou ao atraso tecnológico, a fotografia acima dava conteúdo visual a uma série de ambivalências ou “dissonâncias” capturadas nas pesquisas sociológicas de Bourdieu sobre a acelerada e turbulenta “modernização” da sociedade argelina. Como a fotografia da motociclista de burca, Bourdieu encontrou vários outros fenômenos que pareciam contraintuitivos às narrativas clássicas - com frequente colorido colonialista - da passagem do tradicional (rural, familista etc.) ao moderno (urbano, individualista etc.) na Argélia.
Por último, mas não menos importante, a pesquisa de atores e coletividades marcados pela tragédia da guerra forçou Bourdieu a manter uma atitude de intensa autorreflexão sobre as condições sociais da sua própria pesquisa, como ele confessa ao seu entrevistador ao tratar justamente de uma oportunidade fotográfica (as fotos vão logo abaixo da citação):
“[…] Eu havia partido para as montanhas a pé para observar as aldeias destruídas, e encontrei casas que tinham tido seus telhados retirados para forçar as pessoas a saírem. Elas não haviam sido queimadas, mas não eram mais habitáveis. E eu me deparei com jarras de argila nas casas […] na Cabília, eles as chamam aqoufis, essas grandes jarras de argila decoradas com desenhos. Os desenhos são frequentemente de cobras, cobras sendo um símbolo de ressurreição. E, ainda que a situação fosse tão triste, eu estava feliz em poder tirar fotografias – era tudo tão contraditório. Eu só fui capaz de tirar fotos dessas casas e imóveis porque elas não tinham mais telhados […]. Eu estava muito comovido e sensível ao sofrimento das pessoas, mas, ao mesmo tempo, eu tinha o distanciamento de um observador, manifesto pelo fato de que estava tirando fotos” (Bourdieu, 2012, p. 18).
Tal experiência íntima dos vínculos históricos entre pesquisa etnológica e violência colonial não levou Bourdieu a reduzir a primeira a mera expressão da última, mas, ao contrário, a defender uma ciência social que mantivesse consciência crítica a respeito das suas próprias circunstâncias de feitura. Em um paradoxo apenas aparente, Bourdieu tomou a “descoberta” das condições coloniais e violentas de possibilidade de sua pesquisa sociocientífica na Argélia como o primeiro passo no combate aos potenciais vieses colonialistas dessa própria pesquisa, bem como da produção de um conhecimento sociológico capaz de expor fidedignamente, inclusive pela fotografia (sociologicamente contextualizada), os males do colonialismo.
*Gabriel Peters é Professor de Sociologia da UFPE. Escreve com alguma frequência no Blog do Labemus: https://blogdolabemus.com/
Para citar esse texto:
PETERS, Gabriel. Fotografias sociológicas: nota sobre os usos da fotografia na sociologia de Pierre Bourdieu. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais
-Série de dez textos e vídeos sobre o pensamento sociológico do autor: https://blogdolabemus.com/category/acervo/series/bourdieu-em-pilulas/
-Para quem quer uma discussão mais detalhada (embora em uma prosa mais pesada) sobre os temas deste ensaio, deixo o link para o artigo “De volta à Argélia: a encruzilhada etnossociológica de Bourdieu”, publicado na Tempo Social: Revista de Sociologia da USP: https://www.scielo.br/j/ts/a/GjFQbPV985Z7mRFPnCtn3Jz/?format=pdf&lang=pt
Livros:
BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BOURDIEU, Pierre. Picturing Algeria. Org. de Franz Schultheis e Christine Frisinghelli. New York, SSRC/Columbia University Press, 2012.
BOURDIEU, Pierre. Algerian sketches. YACINE, Tassadit (org.). London: Polity Press, 2013.
BOURDIEU, Pierre (org.). Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Les Editions de Minuit, 1965.
FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador UFBA, 2008.
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