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Frans Post e a paisagem da Nova Holanda. Entrevista com o professor Daniel Vieira (1/2)

O professor e historiador Daniel de Souza Leão Vieira (UFPE), autor do livro Frans Post e a paisagem da Nova Holanda, fruto de sua tese de doutorado na Holanda, aceitou o convite do imageH e concedeu uma entrevista que será apresentada em duas partes.



Nesta primeira, ele responde a duas perguntas sobre Frans Post, artista que esteve no Brasil durante o período de ocupação holandesa em Pernambuco, nos tempos do governo do Conde Maurício de Nassau, no século XVII. Seus desenhos e pinturas deste período retratam paisagens de zonas açucareiras nordestinas e hoje estão presentes em museus, livros didáticos, dissertações, catálogos e publicações sobre o período.


Em seu trabalho, Daniel Vieira faz um estudo da cultura visual holandesa, percebendo como as imagens produzidas por Post interagem e atuam no imaginário construído por aquela sociedade dos anos de 1600. Além de buscar analisar práticas culturais que nortearam o trabalho de Post assim como os modos de produção e a circulação de suas obras, Vieira inova ao estender sua análise para entender como a obra do pintor holandês foi ressignificada, séculos após a sua realização, para o público brasileiro dos anos de 1920 e 1930.

Frans Hals. Retrato de Frans Post. Museu de Worcester.

Logo nas primeiras páginas do seu livro, você revela que Frans Post, pintor holandês considerado “o primeiro pintor de paisagens, formado em escola no Velho Mundo, a representar a América em imagens” que esteve em Pernambuco trabalhando para o conde de Nassau, era pouco ou quase desconhecido na “Holanda” do seu tempo. Sua obra ganhou destaque e saiu das “sombras” basicamente no século XX. Como você explica esse tão demorado (re)conhecimento?


Se trata de uma pergunta muito interessante: a história do pós-vida das imagens produzidas no século XVII, ou seja, a história da circulação nos séculos subsequentes destas imagens - tanto as pinturas quanto os desenhos e as gravuras de Frans Post.

(...) Primeiro, esse título dado a ele, de primeiro pintor de paisagem formado em escola do Velho Mundo a representar a América em imagens. Isso fala muito mais de uma construção posterior pela crítica, sobretudo do século XX. Todo esse título longo, quase nobiliárquico, é uma invenção da crítica. Não é muito bem uma apreciação que o século XVII, a sociedade contemporânea a ele, fez. Segundo, ele não era desconhecido na Holanda do tempo dele, ao contrário: o esquecimento da obra de Frans Post foi posterior.

O século XVII, o chamado século de ouro na Holanda, viu a emergência da criação da Companhia das Índias Ocidentais, a guerra contra a Espanha, a necessidade de ter acesso ao açúcar brasílico e a invasão [holandesa] a Pernambuco. Nesse contexto, Maurício Nassau veio como Governador Geral, formou aquela comitiva, aquela história que todo mundo já conhece, né? E aí veio o Frans Post como pintor que terminou se encarregando de pintar cenas das vilas e dos fortes - tema que tinha a ver com as imagens já consideradas como um gênero de pintura na Holanda do século XVII.


Se formos analisar, do ponto de vista de uma história social da arte, entendemos que a colocação dele no mercado, num nicho muito específico, significava que ele tinha uma certa notoriedade entre os outros pintores. Nesse sentido, cito por exemplo, um pintor como o Jan van Goyen, que foi importantíssimo para constituição de um gênero de pintura de paisagem na Holanda do século XVII que produzia imagens baratas para serem vendidas no mercado a 20, 30 florins um quadro. Frans Post produzia, por exemplo, quadros com um preço de 100, 120, 150, 200 e até 300 florins. Ou seja, ele estava produzindo num segmento de mercado que pagava bem.


Então isso significa que ele teve uma certa notoriedade no período. Tanto que ele foi objeto de pintura de retrato, por um retratista famoso, conterrâneo a ele em Haarlem, chamado Frans Hals. Isso também atesta uma certa importância a ele. O ponto é que ele não deixou seguidores e aí, nesse sentido, a pintura de paisagem com tema brasílico terminou com ele.


Temos que colocar isso dentro de um contexto histórico da produção artística holandesa, onde a partir da década de 1670, o mercado se reconfigura. Em meio a isso tudo, o Brasil é perdido, a negociação com Portugal avança, na década de 1660 o Brasil é devolvido mediante pagamento por parte da coroa portuguesa… e aí o que acontece é que o tema brasílico cai meio que no esquecimento, à medida que o século de ouro vai transcorrendo.


O presente que Maurício de Nassau deu, ao reunir os quadros que Frans Post pintou no Brasil com outros quadros pintados por ele na Holanda, com os quadros de Albert Eckhout, ao rei Louis XIV de França- que os exibiu no Salão da Comédia, no Palácio de Versalhes, por dois meses- entreteve o público francês com o exotismo brasileiro até ser substituído pelo exotismo de outras exposições sobre outras regiões do mundo. Depois, esses quadros foram guardados, colocados em reservas técnicas e esquecidos do grande público.

Carro de Bois, 15.08.1638. Frans Post. Óleo sobre tela. Coleção Museu do Louvre

De fato, apesar de os quadros pintados por Frans Post circularem no mercado de arte ao longo do século XVIII e XIX, as referências a Frans Post nos livros especializados foram escasseando. Por exemplo, ainda no início do século XVIII, Arnould Houbracken, em 1719 fez menção a ele, mas depois esses livros deixaram de mencioná-lo. O esquecimento se deu por parte de uma História da arte que foi se institucionalizando nas Universidades ao longo do século XIX.


A emergência de um conceito realista da imagem por parte da crítica de arte francesa em meados do século XIX fez com que houvesse a criação de uma arte holandesa, enquanto categoria, a partir de temas considerados pátrios. Então as imagens sobre o Brasil terminaram caindo na rubrica de representações do outro, e não tomadas como imagens que estavam relacionadas à identidade holandesa.


Houve uma dissociação entre o sentido de identidade holandesa nessas imagens que representam o Brasil. Então o que se canonizou como arte holandesa foram as imagens que se se relacionam à sociedade holandesa metropolitana, e não às suas colônias. Nesse sentido, foi preciso esperar que o mercado de colecionadores no Brasil se organizasse (e isso foi muito tardio porque a nossa experiência acadêmica de crítica e história da arte é muito tardia em função de uma série de questões de cultura visual portuguesa).


Para isso foi necessário todo um processo, ao longo do século XIX, de institucionalização com a criação da academia Imperial de Belas Artes e a constituição de um público consumidor mínimo. A partir da década de 1890, colecionadores, sobretudo paulistas, se interessaram por remontar essa iconografia produzida no período holandês e essas imagens de Frans Post passaram a ser interessantes a um público brasileiro.

Ou seja, é na virada do século XIX para o XX, que o público brasileiro estava preocupado em mobilizar discussões sobre arte para poder reacessar as questões das identidades nacionais, sobretudo a partir do momento republicano. Foi assim que as imagens chegaram ao século XX, sobretudo em Pernambuco.

 

Qual o papel desempenhado por estudiosos pernambucanos no “resgate”, por assim dizer, das obras de Post no início do século XX? De que maneira as obras do pintor holandês foram ressignificadas e dialogaram “em meio à emergência do discurso regionalista que inventou o Nordeste”? Hoje, as imagens produzidas por Post estampam anúncios publicitários, livros e catálogos e até mesmo o nome do pintor batizou fachadas de prédios residenciais e empresariais. Por que Post passou de desconhecido, séculos atrás, a figura de destaque na história pernambucana e, em certa medida, brasileira?


Então foi nesse contexto de circulação e recepção das imagens de Frans Post (...)que na virada do século XIX para o XX essas imagens se tornam alvo do interesse de pesquisadores brasileiros, sobretudo Pernambucanos. Então a primeira tentativa de localizar as imagens de Frans Post, sobretudo as que as fontes atestavam que tinham sido produzidas no tempo do governo de Maurício de Nassau, o rastreio delas foi tentado primeiramente por José Hygino Duarte Pereira que ficou à frente da missão Pernambucana nos arquivos neerlandeses para estudar esse período, mas ele não conseguiu localizar esses quadros.


Quem consegue localizar esses quadros no início da década de 1910 é Pedro Souto Maior, que inclusive relatou isso no artigo que saiu pela Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1913, chamado “Fastos Pernambucanos”. Esse artigo dá conta da descoberta de Pedro Souto Maior dos quadros que Frans Post havia pintado no Brasil e que haviam sobrevivido.


Sabe-se que Frans Post pintou 18 quadros que foram presenteados a Louis XIV e, da exposição, esses quadros foram depois recolhidos nas reservas técnicas e foram encontrados por Pedro Souto Maior, em 1911, no Museu da Marinha e depois foram transferidos, então, para o Museu do Louvre. Alguns deles ganharam o mercado e outros permaneceram no Louvre, que hoje tem a propriedade de quatro desses sete que restaram conhecidos; os outros três estão espalhados; dois estão ainda fora do Brasil.


(...) Alguns deles ganharam o mercado e outros permaneceram no Louvre, que hoje tem a propriedade de quatro desses sete que restaram conhecidos; os outros três estão espalhados; dois estão ainda fora do Brasil. Quer dizer, um pertence ao Rijksmuseum, de Amsterdã, mas que está emprestado sem prazo para a Mauritshuis, a Real Galeria de arte holandesa, que funciona em Haia; um outro quadro, da coleção Cisneros, está em Nova York; e o terceiro, finalmente, é o único que está no Brasil e é justamente o quadro Forte Frederick Hendrik, que é da exposição permanente Frans Post e o Brasil holandês, do Instituto Ricardo Brennand.


Então depois que o Pedro Souto Maior encontrou esses quadros, houve um aumento de interesse por parte dos pesquisadores, dos colecionadores. E nesse contexto, de história republicana e refazer das identidades nacionais, no início do século XX, um pesquisador e conhecedor de arte, que era diplomata, o Joaquim de Sousa-Leão, ele se interessa pelo Frans Post no âmbito da discussão sobre o passado do Brasil holandês naquela época de emergência dessa preocupação com as identidades nesse período dos anos 30.


Então durante o governo estadual de Carlos de Lima Cavalcante, houve um interesse em construir uma imagem de bom governo, se apoiando no imaginário do bom governo de Maurício de Nassau. Nesse sentido, Joaquim de Sousa-Leão conseguiu, como parte da organização da produção desse material ligado ao governo estadual, reunir, pela primeira vez, a sistematização de algumas informações, de crítica estética sobre a vida e obra de Frans Post. Foi aí que aparece um catálogo, em 1937, que foi justamente ano que o governo estadual decidiu para comemorar os trezentos anos da chegada de Maurício Nassau em Pernambuco.

(...) Ora, essa imaginação do Brasil holandês presente nos anos 1930 tem a ver com essa “invenção do Nordeste”. Enquanto discurso “sudestino” sobre o outro, atrasado, o Nordeste era muito associado a seca, fome, fanatismo religioso e houve interesse por parte das elites açucareiras, que encontra expressão em diversos intelectuais, sobretudo na figura do Gilberto Freyre, de tentar reabilitar o nordeste açucareiro, criando uma imagem de contraposição a esse discurso “sudestino” do outro. E aí, nesse sentido, aparece, então, um elogio da cultura canavieira, um elogio da Zona da Mata e, através dessas imagens de paisagem fértil, fazer esse elogio à civilização do açúcar.

(...) Então essa foi a chave que o público pernambucano dos anos 30 teve, a partir de Joaquim Sousa-Leão, a partir de apreciações do próprio Gilberto Freyre, para poder, então, se apropriar dessas imagens. Removendo as molduras do século XVII e reemoldurando elas, metaforicamente falando, através de uma cultura visual Pernambucana da época.

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