Da primeira guerra mundial à guerra na Ucrânia: algumas situações em que a câmera serviu como arma antiguerra ao oferecer um "rosto" ao conflito
Por Cibele Barbosa*
Os conflitos recentes entre a Rússia e a Ucrânia têm atraído a atenção e os olhos do mundo inteiro diante da ocupação das cidades ucranianas pelas tropas russas. Em tempos de redes sociais e smartphones, o drama dos refugiados e as ações bélicas ocupam boa parte dos noticiários e mensagens em grupos de aplicativos de mensagens. Nesse sentido, as várias narrativas visuais protagonizadas por diferentes atores - vítimas civis, soldados, jornalistas profissionais, políticos, voluntários e outros - deixam o espectador à mercê de seus próprios filtros, percepções e opiniões sobre o ocorrido. Diferentemente de outros tempos em que somente era possível visualizar os conflitos e aferir a dimensão de seus estragos e efeitos a partir de mediadores específicos -revistas e jornais- ou, como na Guerra do Golfo, com imagens fortemente controladas pelo governo norte-americano, hoje o leque de possibilidades é amplo embora, por vezes, caótico.
Principalmente no século XX, esses registros “humanizaram” e trouxeram “carne e lágrimas, sangue e ossos” para situações em que muitos só enxergavam pólvoras e explosões. Os enquadramentos de imagens, as escolhas dos fotografados, as locações, as situações e até mesmo a eventualidade de um clique sem aviso prévio, enfim, cada detalhe do trabalho desses/as fotógrafo/as revela não só a marca estilística de suas produções, mas incluem seus valores, pensamentos e posicionamentos em relação ao conflito. De modo geral, esses profissonais apontaram com suas lentes, em diferentes épocas e cenários, a centralidade do sofrimento humano em meio a decisões políticas e militares.
Suas fotografias não apenas funcionam como registro informacional sobre as guerras, mas carregam consigo técnicas e discursos visuais: narrativas em preto e branco ou coloridas transformadas em imagens que contam histórias.
Para este texto, destaco os trabalhos recentes de Alexander Lourie, fotógrafo freelancer norte-americano, nascido em 1989. Nos últimos anos, ele tem se destacado por suas fotografias humanistas captadas sob situações-limite em zonas de conflito militar. Esteve na Síria, no Líbano, na Mauritânia e recentemente tem registrado imagens de civis nas ruas de Kiev (Ucrânia). Os detalhes de seus enquadramentos, normalmente com rostos em primeiro plano seguidos de cenários com referências específicas à situação em que aqueles indivíduos se encontram, geram não apenas comoções, mas comunicam sobre o que está acontecendo.
O fotógrafo contrasta fotos de crianças refugiadas com seus bichinhos de estimação, ou um soldado cercado de cachorrinhos enquanto, ao fundo, fumaças de explosões indicam o cenário de destruição no norte da Síria. A intenção do fotógrafo consiste exatamente em mostrar a dupla face em que situações cândidas, como a de soldados e meninas com pets, são ladeadas por uma sequência de situações chocantes de sofrimento, como crianças mutiladas em hospitais ou idosas com rostos ensanguentados. Assim como muitos fotógrafos de guerra, Lourie não poupa seus espectadores: seu intento, revelado pelas lentes duras, é mostrar os efeitos de conflitos bélicos nos corpos dos mais vulneráveis. Oferece, portanto, uma face à guerra.
Historicamente, a proposta de imagens chocantes para despertar sentimentos pacifistas foi um recurso utilizado por fotógrafos e por militantes. Após a I Guerra Mundial, o pacifista e anarquista alemão Ernst Friedrich reuniu centenas de fotografias de arquivos e publicou-as em um dos mais impactantes fotolivros antiguerra do século XX: Guerra contra a guerra, publicado em 1924. Neste caso, Ernst compilou imagens extremamente chocantes, produzidas por terceiros, muitas das quais realizadas para serem guardadas a sete chaves em arquivos militares e médicos. Ao dispô-las, conferiu-lhes uma narrativa, imprimiu-lhes um pathos - em outras palavras, imagens consideradas impublicáveis foram “atiradas” para os leitores/espectadores revelando as mutilações e as marcas dolorosas estampadas nas faces e nos membros de soldados e vítimas. O livro foi traduzido para várias línguas e só na Alemanha teve 10 edições em seis anos. “Ver” o sofrimento sem filtros daqueles olhos sobre faces desfiguradas, encarando o espectador, é algo que abalou a opinião pública da época.
Para quem desejar saber mais sobre a publicação de Friedrich, a ensaísta Susan Sontag, em seu livro Diante da dor dos outros, dedica algumas páginas a discutir a “terapia de choque” provocada por esta publicação. A autora tece algumas reflexões sobre a eficácia deste tipo de exposição imagética e questiona a banalização das imagens de sofrimento midiatizadas em décadas posteriores. Em linhas gerais, Guerra contra a guerra foi um dos panfletos antibelicistas mais contundentes do século XX.
No âmbito da fotografia autoral em espaços de guerra, os trabalhos de Robert Capa entraram para a História. A trajetória do fotógrafo judeu e húngaro, cujo nome de batismo era Endre Friedmann, é de impressionar. Em uma recente biografia, Alex Kershaw destaca que o nome Robert Capa foi inventado pelo fotógrafo, juntamente com sua companheira, fotógrafa de guerra e sócia, Gerda Pohorylles ou Gerda Taro. Segundo o fotógrafo, o nome “Bob Capa”parecia ser mais sonoro e atrativo para os editores franceses. Em Paris, vendia fotos de autoria sua e de Gerda, captadas com a uma pequena máquina Leica, e dizia aos editores que ambos trabalhavam para um fotógrafo norte-americano chamado Robert Capa.
Quando a revista VU o enviou juntamente com Gerda, a primeira mulher fotógrafa de guerra, para gerar imagens da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), palco onde infelizmente Gerda foi morta aos 26 anos, Friedmann, que depois adotou e incorporou definitivamente o nome Robert Capa, produziu uma das mais icônicas e polêmicas fotografias de guerra: a do “soldado caído”, captada no momento em que um combatente legalista foi alvejado. A imagem, segundo uma entrevista concedida por Capa em 1937, havia sido obtida no momento em que o soldado espanhol tentava escalar a trincheira. Ao ser atingido, seu corpo tombou ao lado do fotógrafo. A foto, que ocupou a primeira página da prestigiosa revista norte-americana Life, suscitou polêmicas quanto à veracidade do ocorrido. Seus biógrafos sustentam a dúvida se o registro é de um corpo que tomba sem vida, se é de um soldado que apenas se desequilibra ou se a situação foi “encenada” a pedido de Capa.
Apesar das polêmicas, a vasta obra do fotógrafo atesta o seu engajamento e imersão na captura de fotografias de guerra que, como ele próprio definiu em sua autobiografia, eram “ligeiramente fora de foco”. As fotos, um pouco borradas e difusas, transmitiam as inquietações, indefinições e medos provocados pelos conflitos; além de atestarem a instantaneidade do momento de captura da imagem. Capa morreu aos 40 anos, em 1954, ao pisar em uma mina durante a Guerra da Indochina(1946-1954).
Muito pode ser estudado e debatido sobre a relação entre imagens e guerras. As disputas por narrativas visuais, a relação com a imprensa, o mercado das imagens, os desdobramentos políticos e humanitários dos registros de sofrimento, os limites da exposição de pessoas, a complicada relação entre estética e dor, entre outros temas, compõem o bojo das discussões de especialistas e publicistas.No entanto, não se pode perder de vista que, a partir deste material imagético que ocupou capas de revistas de outrora e telas de smartfones atuais, é possível tecer reflexões importantes sobre os impactos sociais desses registros e o fato destes tornarem visíveis rostos e dores de anônimos cujas vidas foram irremediavelmente atingidas pelos conflitos. Trata-se de pessoas que não puderam contar suas histórias com palavras, mas apenas com olhares.
*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do ProfSocio e coordenadora do imageH.
Para citar esse texto:
BARBOSA, Cibele. Imagens de guerra contra a guerra. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais:
CAPA, Robert. Ligeiramente fora de foco. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
KERSHAW, Alex. Sangue e champagne. A vida de Robert Capa. São Paulo: Record, 2013.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Vídeo sobre Robert Capa:
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