Em Lapsos, Aterros e Memórias, o fotógrafo disseca os processos de resistência do ecossistema ante a invasão dos viadutos na zona sul do Recife ao longo de oito anos.
Por Cristiano Borba*
É pleno 2021 e, quando vejo a obra digital e online Lapsos, Aterros e Memórias, do fotógrafo Marcelo Soares, vêm-me à cabeça trechos dos refrões das letras de canções de dois discos de bandas pernambucanas lançados em 1994.
De Chico Science & Nação Zumbi, ressoa o “rios, pontes e overdrives - impressionantes esculturas de lama”.
Da mundo livre s/a, lembro de “onde há calçamento, pode crer que havia mangue”.
Não seria impossível imaginar que essa minha associação mental poderia ser real: com o manguebeat, de vinte e sete anos atrás, soando como sua trilha sonora — uma vez que se trata de uma peça multimídia, multissensorial e sinestésica sobre a relação forçada entre os produtos de esforços de crescimento urbano e imobiliário e a insistente resiliência de uma unidade de conservação ambiental.
Qualquer semelhança com as ideias do pensador pernambucano Josué de Castro também não é mera coincidência — pois as ideias de Castro são declaradamente citações e referências, tanto para cena mangue como para os responsáveis por Lapsos, Aterros e Memórias.
Mas, sem negar minhas referências pessoais, é fato que a experiência imersiva produzida por Marcelo tem um caráter subjetivo original e contemporâneo. Não só porque as capturas de material foram feitas exclusivamente para a obra, mas também porque combina e alterna extremos visuais expressivos — fotos estáticas e vídeos em movimento acelerado, capturas ao nível do chão do mangue e vistas feitas por drone — com faixas de áudio do som ambiente do local — que devem ser escutadas com fones de ouvido, tornando o somatório do conjunto ainda mais singular e forte do que a apreciação dos itens em separado.
Os temas dos conteúdos dos registros não são menos variados do que os formatos: pessoas, automóveis, edifícios, espécies vegetais e animais (muitas em risco); a lama e a água dos rios e da vasta unidade de conservação do manguezal encontrados na região sul do Recife — que é, ao mesmo tempo, borda, margem e continente da bacia dos rios Pina e Jordão.
De fato, se fosse fazer um resumo da exposição, poderia usar esse tropo: um registro tão extensivo quanto intensivo (de 2013 a 2021) de uma disputa desigual entre a Via Mangue — obra viária de grande porte mais cara da história da Cidade do Recife — e o Parque dos Manguezais — o maior manguezal urbano do Brasil e, de verdade, um parque, inclusive com acesso à visitação do público.
Estranhamentos necessários
Assim como a audição dos primeiros discos do manguebeat, Lapsos, Aterros e Memórias tem tanto impacto de surpresa-estranhamento e de qualidade-técnica que, às vezes, podemos até esquecer que o seu discurso principal é, em essência, de denúncia — e, também, de dor.
Quando passamos a essa segunda camada de leitura, entendemos que Soares apontou as lentes das suas câmeras e os microfones do seu gravador como quem aponta um dedo conscientemente acusatório para os principais antagonistas à possibilidade de uma digna vida anfíbia recifense, como dita por Josué. A Via Mangue aparece diretamente representada como as grades, os panos de asfalto e os blocos de concreto que rompem o verde, a água e a lama. Em silhuetas e em reflexos indiretos, encontramos o shopping center fundeado sobre um aterro e os edifícios empresariais gélidos que o rodeiam; os revestimentos coloridos e datados dos prédios do pólo médico e dos condomínios habitacionais.
Como as imagens possuem também a capacidade de nos fazer ver coisas que estão fora dos seus fotogramas, não é raro que as nossas memórias completem as sequências visuais com lampejos de cenas em que aparecem nas recentes lembranças coletivas daquela região: dos troncos das torres do tal ‘Novo Recife’, emergentes na paisagem com seus materiais de baixa tecnologia construtiva expostos de modo tão chocante como a carne e os ossos de um animal atropelado em uma via expressa...
Este último, e não menos importante elemento, tenho certeza, é também um sujeito oculto nas sentenças elaboradas pela narrativa de Soares em sua obra. O empreendimento imobiliário do Cais José Estelita, vizinho (e simbioticamente ligado) à Via Mangue, ainda aparece como um pesadelo prolongado para quem viveu tantas lutas pelo direito à cidade e ajudou a construir grupos-ações como o Direitos Urbanos e Movimento Ocupe Estelita.
Maturidade artística e cidadã
Desde o início dessa pequena revolução de ideias que tomou o Recife a partir de 2011, o fotógrafo-autor-artista contribuiu com registros das pessoas, dos espaços e dos atos que encorparam os movimentos. Suas fotos comprovaram a factualidade das ações dos grupos em artigos, jornais, livros e palestras. Muitas seguem liberadas para o uso justo e consciente no perfil do flickr do Direitos Urbanos.
Hoje, esse princípio de construção em grupo, de forma coletiva, permanece no processo do autor e é destacado no projeto da exposição. Os nomes nos agradecimentos são muito mais do que meras menções em uma ficha técnica.
O impacto e a relevância de Lapsos, Aterros e Memórias, portanto, são reforçados pela própria história pessoal de Marcelo Soares e sua relação com a cidade e com seus companheiros de luta. Uma obra neste formato e com esta profundidade, colocada no ar em plena pandemia — quando muitos de nós estamos evitando sair às ruas — é tão necessária enquanto documento quanto feliz enquanto evento, pois marca e atesta a maturidade de um cidadão-criador e do seu coletivo ao longo de uma bela aventura para nos contar.
Autor: Marcelo Soares | Lapsos, aterros e memórias | Todos os direitos reservados
*Cristiano Borba é Analista em Ciência e Tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco e pesquisa e escreve sobre cidades, pessoas e cultura contemporânea.
Para citar esse texto:
BORBA, Cristiano. Marcelo Soares interpreta a relação entre a cidade e o mangue. ImageH,2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
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