Uma educação para a autonomia em tempos de realidade virtual exige do(a) professor(a) de humanidades questionar o capitalismo das emoções e as armadilhas do consumo criado por essas novas ferramentas tecnológicas. Nesse sentido, de que maneiras o Metaverso pode ser problematizado nas aulas de humanidades?
Por Cibele Barbosa*
As possibilidades didáticas de utilização de realidade virtual e aumentada como ferramenta de ensino-aprendizagem já é um assunto bem recorrente — inclusive aqui no ImageH. Mas me permitam observar o fenômeno de outra forma. Afinal, antes de serem um recurso ou uma ferramenta, aplicativos, jogos, redes sociais e plataformas sensoriais e imaginativas — como o Metaverso —, estão relacionados às práticas sociais do meio em que estão inseridos.
Por essa razão, essas plataformas, para além de instrumentos tecnológicos estritamente práticos, são objetos de estudo sociológico. Elas nos permitem pensar modelos sociais, valores, relações de poder e de trabalho. O ensino de humanidades pode oferecer outras “lentes” para esse universo colorido e estimulante, e que vai além dos óculos de realidade virtual: as humanidades podem fornecer instrumental crítico para olharmos para essas dinâmicas, e sua respectiva cultura visual, com lentes analíticas.
Ao invés de sermos apenas consumidores desse (meta)verso que se anuncia, pensemos nele como um palco onde modelos de sociabilidade e de subjetividade são processados. Onde relações econômicas são estabelecidas, onde exclusões e divisões são operadas, onde decisões políticas podem ser tomadas.
Em palavras mais simples, consideremos um recorte interessante para ser trabalhado em sala de aula. Em algum momento, todo aluno de humanidades, tanto em aulas de história, como de sociologia ou geografia, vai estudar o tema do capitalismo. Nos dias atuais, vários autores buscam rótulos para dar conta do conjunto de transformações que estamos vivendo: modernidade tardia, capitalismo neoliberal ou mesmo a chamada revolução industrial 4.0.
Com mais ou menos complexidade, esses estudos vêm destacando que vivemos nos dias atuais sob bases capitalistas que ganham novas roupagens e estratégias de ação. Ou seja, os meios pelos quais as elites econômicas mantêm a concentração dos lucros e a exploração do trabalho ganham mais velocidade, mais apelo emocional e tecnológico.
Desde a segunda revolução industrial, empresas se esforçaram em estimular gatilhos emocionais para convencer os consumidores a adquirir produtos não somente por sua inovação tecnológica ou pela utilidade que eles possuíam, mas pelo valor (econômico) e o status que representavam. Assim, uma máquina de necessidades foi sendo criada. A associação entre estudos psíquicos e estratégias publicitárias foi bem sucedida (ao menos para quem detinha os meios de produção).
Nas primeiras décadas do século XX, publicitários e empresários perceberam que um consumidor passava a adquirir um produto por razões que muitas vezes iam além da relação custo-benefício: uns compravam por invejar o que outros possuíam, outros para demonstrar status, outros para representar traços de personalidade(mais liberais, mais conservadores, mais politizados, mais familiares etc).
Propagandas de carro tornaram-se clássicas nesse quesito: a publicidade mostrava que ter um determinado carro fazia o consumidor ser reconhecido como alguém forte, — em outros casos, como alguém livre; e, mais adiante, como um conquistador. Assim, as mercadorias ganhavam poderes performativos das subjetividades: ter um sapato da marca X era sinônimo de ser uma mulher independente; ter uma bolsa Y era sinônimo de ser uma pessoa respeitável; e assim por diante.
Com o advento da internet no final do século XX, e a eclosão das redes sociais e smartphones no século XXI, os modelos de validação social e de consumo receberam novos contornos. Com a ajuda de inteligência artificial, algoritmos passaram a mapear preferências, opiniões e gostos através de dados oferecidos por nós mesmos, de “mão beijada”, nas redes sociais.
Nesse caso, a tática de convencimento para o consumo passou a ser uma tarefa mais fácil e promissora na medida em que se coadunava com os dados sobre os consumidores. As formas de validação e reconhecimento foram, como nunca, estimuladas pela explosão de informações pessoais circulantes aos nossos olhos.
Olhos. Como nunca, esses órgãos passaram a ser estimulados por telas em toda parte, em qualquer canto. Tudo se tornou hipervisível e sem limites e passamos a ver o que antes era algo escondido, como a intimidade de uma pessoa em seu quarto. Ou então, passamos a ser espectadores de espetáculos da vida real — dos mais escabrosos aos mais sublimes. Em fração de segundos, passamos de um sentimento de horror diante de uma cena de um acidente para o maravilhamento com um bichinho ou com uma paisagem natural. Sem tempo para processar, fixar ou mesmo pensar sobre, ficamos reféns das emoções que essas imagens evocam.
Mas essas imagens não são buscadas de forma clara por nós, que somos interpelados por elas em meio à enxurrada de vídeos do tiktok ou às propagandas que nos são oferecidas à revelia, em meio ao uso do feed de alguma rede social. Irresistíveis para muitos, imagens provocam desejos de vê-las — pulsões em observá-las nos paralisam, conduzem, seduzem.
Os jogos e a grande loja.
Certa feita, ao observar o jogo de videogame do meu filho, vi que ele tinha à disposição um avatar: um indivíduo digital que o representava. Essa criaturinha feita de pixels ainda tinha várias possibilidades de customização: cabelos verdes, chapéus de pelúcia, cores de pele, vestimentas etc., tudo mostrado em uma vitrine. As chamadas skins davam asas à imaginação e ao desejo cada vez maior de possuí-las: “Mamãe, compra robux?”. “O que é isso, menino?” Perguntei. “É a moeda virtual usada no jogo. Ela permite comprar skins”.
Elas não serviam para matar a nossa fome ou nos vestir no frio, mas essas peças vendidas tinham a utilidade de combater inimigos, abrir caminhos virtuais, construir casas com tijolinhos de “faz de conta”. Uma outra vida, sem lastro na realidade a não ser o déficit na conta bancária da mãe.
Quando vi a infinidade de produtos passíveis de serem adquiridos — todos muito coloridos, exagerados, sedutores —, notei quase uma compulsão no meu filho em sempre necessitar mais e mais de robux para comprar a última novidade: o chapéu em forma de animal ou a bota que permite voar. Nessa hora vi a semelhança dessa loja “de jogo” com o que se apresentou para nós nos últimos meses como o mais novo projeto do dono do facebook, Mark Zuckerberg: o Metaverso. Em linhas muitos gerais, trata-se de uma plataforma que mistura realidade aumentada e realidade virtual: uma espécie de rede social imersiva onde onde pessoas passariam a viver experiências sensoriais, como participar de shows, comprar skins em lojas virtuais e interagir com outros perfis.
Metaverso: palco do capitalismo emocional.
O ponto para o qual chamo atenção em relação ao Metaverso é a dimensão ampliada e sem barreiras para a prática do consumo. Sem lastro com as necessidades materiais, o imperativo desse tipo de consumo são as experiências e emoções.
Nesse sentido, alguns autores, desde os anos 1990, vêm estudando a centralidade das emoções na dinâmica do capitalismo. Como afirmam as sociólogas Eva Illouz e Yaara Alaluf, o termo capitalismo emocional foi criado para melhor descrever os processos que levaram a economia capitalista a canalizar as emoções dos indivíduos para ampliar a produtividade e o mercado de consumo. Nas palavras das autoras, “no capitalismo tardio, vários produtos de consumo são em realidade formas de experiência e, em retorno, um número crescente de experiências é transformado em mercadorias ( Illouz e Alaluf, 2020, p. 93).”
Nas últimas décadas, a emoção, como afirma Byung Chul-Han, tornou-se meio de produção: “O regime neoliberal emprega as emoções como recursos para alcançar mais produtividade e desempenho" (Byung Chul-Han, 2014, p.64).
O que o tipo de vida a ser vivenciada no chamado Metaverso propõe, no entanto, é uma experiência de consumo descolada do lastro material — embora o Metaverso simule lojas, terrenos e cidades reais. A experiência imaterial do consumo emocional, no entanto, se torna um campo sem limitações. Nesse caso, experiências, fantasias e experimentações tornam-se mercadoria: compra-se a possibilidade de visitar de modo virtual simulações de antigas civilizações, a possibilidade de construir relações amorosas com seres virtuais, ter a sensação de ter uma casa que materialmente jamais se conseguiria, ou mesmo ter a sensação de estar em um campo de batalha. Frisson, adrenalina e outras possibilidades virtuais que, no mundo real, encontrariam as limitações da vida física e as barreiras morais, agora se concentram em um mundo de simulacros e simulações produzidas por imagens computacionais.
As implicações deste universo onde operam a virtualidade e a imaterialidade serão temas de muitos debates. No entanto, é possível perceber o quanto as velhas armadilhas emocionais que impulsionam o consumo encontram poucas barreiras e geram ainda mais dependência e fragilidade no consumidor/espectador. Este fica vulnerável diante das manipulações e dos gatilhos emocionais gerados por inteligências artificiais que buscam garantir que, na maior parte do tempo, os usuários estejam presos nessa montanha-russa de sensações pelo consumo.
Não pense, consuma. Não pense, sinta.
Mais do que nunca as imagens, tão importantes em toda a propaganda do século XX, ganham novas aplicações e tornam-se elas mesmas mercadorias deste universo ultrassensorial. Não é tarefa fácil, diante de uma lógica capitalista de consumo e de manipulação com apelos visuais excessivos, manter posicionamentos críticos, analíticos, autônomos e resistentes à enxurrada de estímulos visuais, sensoriais e emocionais.
Nesse sentido, concordamos com o filósofo Byung-Chul Han quando ele diz que no capitalismo neoliberal, no capitalismo do consumo de emoções, a racionalidade não é bem-vinda porque ela implica estabilidade; e a aceleração das redes cultua a velocidade, a instabilidade, a volatilidade.
O capitalismo do consumo, além disso, introduz emoções para criar necessidades e estimular a compra. O emotional design molda emoções e padrões para maximizar o consumo. Hoje, em última análise, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim.Emoções se desdobram para além do seu valor de uso. Assim, inaugura-se um novo e infinito campo de consumo.(Byung Chul-Han,2014,p.66)
É por essa razão que uma educação para a autonomia na contemporaneidade é garantida por uma racionalidade crítica ofertada pela reflexão estimulada por professores em sala de aula. Certamente, esse tipo de discussão com os alunos possui uma duração mais lenta, porém necessária para o exercício analítico. Ela se dá de modo a pensar e discutir as implicações econômicas, políticas, morais e éticas de um tipo de consumo desenfreado pautado em emoções e experiências voláteis — bem como as dependências provocadas por modelos virtualizados e espaços de sociabilidade artificial controlados por empresas como a de Zuckerberg.
*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do ProfSocio e coordenadora do imageH.
Para citar esse texto:
BARBOSA, Cibele. Metaverso, games e o capitalismo emocional. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais:
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica- O neoliberalismo e as novas técnicas do poder. Belo Horizonte/Veneza: editora Ayiné, 2014.
Illouz, Eva; Alaluf, Yaara Benger. O capitalismo emocional. In: História das emoções. Vol. 3. Rio de Janeiro: editora Vozes, 2020.
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