Fotografias de usinas e trabalhadores de Pernambuco do início do século XX podem ser um ponto de partida para problematizar nossa compreensão sobre o capitalismo
Por Guilherme Falcão*
Com base em fotografias de trabalhadores, máquinas e usinas de Pernambuco, material pertencente à coleção do fotógrafo Benício Dias e encontrado nas bases digitais do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, podemos refletir sobre relações de trabalho e sistema capitalista. Esses temas tão trabalhados em sala de aula podem nos levar a refletir criticamente à seguinte pergunta: se o trabalho está presente em todas as culturas e sociedades que se tem registro, o capitalismo é uma disposição natural ou uma construção social?
Ao olharmos para essa fotografia, feita na primeira metade do século XX e disponível no acervo do fotógrafo pernambucano Benício Dias, vemos a rotina comum de trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar, instituições que dominaram a economia pernambucana naquele período. Os registros do cotidiano da usina — situada no município de Barreiros — servirão de ponto de partida para refletirmos brevemente sobre os efeitos da industrialização na nossa percepção de mundo e na nossa relação com o trabalho.
Inicialmente, é importante frisar que um sistema econômico, isto é, uma lógica de produção, nunca se isola em uma única prática. Na verdade, ela tem como fonte toda a gama de interação social, desde a mais distante, da lógica do trabalho (como a religiosidade, a formação das classes sociais, a lógica de parentesco, a alimentação, a arquitetura e a produção artística), até as mais próximas (como a finalidade com que as pessoas trabalham e os produtos conquistados por esse esforço).
Por conta desse alcance tão profundo no nosso cotidiano, tendemos a enxergar como naturais as condições de vida oferecidas pelo capitalismo . Na verdade, porém, nenhuma prática social pode ser entendida como natural. Nossos atos mais simples, desde sentar à mesa para uma refeição, até os atos mais complexos, como praticar a moral, são apreendidos e tutelados socialmente: dentro de casa, com nossos familiares, nas escolas, na igreja, no tribunal, no trabalho.
Como bem lembra Taussig em seu O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul, a tentativa de demonstrar o caráter social do trabalho industrial e do sistema capitalista como fruto de mudanças históricas nos acompanha desde as obras clássicas das ciências sociais. Em O Capital: crítica da economia política, de Karl Marx, por exemplo, lemos que “o avanço da produção capitalista desenvolve uma classe trabalhadora que, através da educação, da tradição e do hábito, julga as condições desse modo de produção leis autoevidentes da natureza”. Já em A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, o sociólogo Max Weber argumenta que o trabalho se apresenta como se fosse “um produto da natureza” ou “um absoluto fim em si mesmo, um chamado”, quando, na verdade, a lógica do trabalho do sistema de produção capitalista “é resultado de um processo longo e árduo de educação”.
Essas citações e exemplos fornecem uma pequena amostra de como as instâncias que compõem a nossa vida cotidiana, por mais profundas e antigas que sejam, são construídas socialmente. Mesmo instituições e práticas com origens remotas — como a igreja católica ou o próprio trabalho — tiveram que sofrer mudanças históricas que as tornaram muito mais culturais e relacionadas às sociedades em que estão inseridas do que naturais e homogêneas.
A mudança de uma lógica de trabalho, seguindo essa linha de pensamento, significa a mudança de todo um conjunto de práticas sociais — por mais distante da economia que elas pareçam ser. Com isso, não quero dizer que o trabalho é a causa das alterações dos sistemas, instituições e estruturas sociais; na verdade, o trabalho deve ser relacionado com todas as outras esferas de nossa vida. Vejamos no exemplo a seguir.
Numa outra fotografia pertencente ao acervo de Benício Dias, que mostra os edifícios da usina compondo a paisagem da região, podemos encontrar um pouco das mudanças na arquitetura e na organização social que foram promovidas pela industrialização de Barreiros. A produção do açúcar nos engenhos, que era ambientada pelo trabalho escravo e pela lógica comercial mercantilista, foi substituída pelo trabalho dos operários e pela lógica comercial capitalista das usinas.
A dimensão material da paisagem é um dos elementos, entre tantos outros, que testemunham, registram ou representam os processos de mudança de sistema econômico. Em contexto geral, para o Brasil se tornar um país capitalista, moderno e industrializado, ele precisou passar por mudanças estruturais fundamentais: a constituição do seu Estado (a partir do rompimento do pacto colonial, em 1822), o estabelecimento de uma economia “independente”, a busca por uma “identidade nacional” (o que torna o Brasil Brasil?), a mudança da divisão social do trabalho (antes formada por senhores de engenhos e escravos e, desde então, formada por patrões e empregados), a alteração da estratificação social e mais uma série de ajustes que acompanharam a nova formação da sociedade brasileira.
Essas mudanças materiais e imateriais — que podemos chamar de mudanças estruturais — refletem as possibilidades dos indivíduos de executarem ações no interior da nossa sociedade, nas suas vidas cotidianas e, consequentemente, nas suas visões de mundo.
Com essa reflexão, podemos entender a lógica de trabalho no capitalismo não como uma disposição “natural” dos seres humanos para obter lucros e acumular riquezas, mas como fruto de uma relação histórica, política e cultural que elegeu essas ambições como um modelo.
*Guilherme Falcão é bacharel em Ciências Sociais, bolsista multiHlab/FACEPE e integrante do imageH.
Para citar esse texto:
FALCÃO, Guilherme. O capitalismo: uma disposição natural ou uma construção social? ImageH, 2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais:
WEBER, Max. A ética protestante e o "espírito" do capitalismo. Tradução Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MARX, K. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
TAUSSIG, Michael T. O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul. Tradução Priscila Santos da Costa. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.
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