Entre 1612-1615, Wama Puma (Felipe Guamán Poma de Ayala,) de origem quéchua, elaborou mais de mil páginas de crônicas acompanhadas de mais de 300 gravuras em que narrou a história da invasão espanhola nos Andes pela perspectiva de relatos dos povos incas.
Por Cibele Barbosa*
Quando o assunto a ser tratado em sala de aula é invasão e colonização das Américas, imagens se repetem tanto em livros didáticos quanto em outras publicações sobre o tema. Recentemente, especialistas no tema tem destacado fontes imagéticas alternativas àquelas geradas por artistas como Theodore de Bry que elaborou gravuras sobre o “Novo Mundo” a partir de registros de viajantes e/ou religiosos que estiveram nas Américas. Seus desenhos ilustraram obras como as de Hans Staden, André Thevet, Bartolomeu de Las casas e outros. São imagens que, de modo geral, correspondem ao imaginário europeu do século 16. As representações dos indígenas seguem descrições físicas em nada semelhantes ao que, de fato, eram. O destaque para cenas de canibalismos, por exemplo, compunha o conjunto de estereótipos de populações nativas das Américas.
O olhar europeu representado nesse tipo de fonte visual se tornou o recurso preponderante que chegou até os nossos dias para pensar ou imaginar aquela época e aquelas populações. No entanto, nos últimos anos, pesquisadores, em uma perspectiva decolonial, têm se empenhado em encontrar, estudar e divulgar outros registros produzidos por não-europeus. A tarefa não foi e não é nada fácil, afinal, vestígios de populações indígenas foram destruídos tanto quanto seus corpos. Da mesma forma, muitos destes possuíam outras formas de vivenciar e registrar o que lhe ocorria: não necessariamente seguiam os padrões de registro e modo de narrar dos europeus.
Porém, para além dessa visualidade hegemônica é possível recuperarmos outros documentos históricos a partir de perspectivas ameríndias. Exemplo é Felipe Guamán Poma de Ayala (Wama Puma), de família originária dos povos inca, que viveu no Peru no século 17, durante o domínio espanhol.
Entre 1612-1615, ele elaborou uma obra constituída por crônicas , chamada Primer Nueva Coronica y Buen Gobierno, com mais de mil páginas e mais de 300 desenhos. O documento foi elaborado com o objetivo de ser encaminhado ao rei da Espanha e denunciar os desmandos de vice-reis, corregedores e outros mandatários europeus ou criollos (descendentes de europeus nascidos na América). Ayala se declarava príncipe dos índios por ser de duas linhagens do Tahuantisuyo (império inca formado por várias lideranças e seus familiares) e argumentava que um bom governo local deveria ter um líder indígena, de estirpe real, para ocupar o vice-reinado instituído no Peru, de modo a conciliar valores cristãos-europeus com a cultura inca.
Um dos aspetos que mais impressionam nessa história é que a obra por ele formulada teria levado trinta anos para ser finalizada. Essa carta-denúncia na forma de crônicas não foi divulgada na Espanha na época em que foi enviada e muito menos consta em arquivos oficiais espanhóis referentes ao período. Ela só veio à público, no século XX, em 1908, quando foi encontrada pelo bibliotecário alemão Richard Pietschmann na biblioteca real da Dinamarca e apresentada no Congresso de Americanistas. Em seu texto, Poma de Ayala denunciava os vícios, a cobiça e os conflitos dos governantes que estariam conduzindo o “ mundo ao revés”.
Para sanar esse caos, era preciso uma liderança autóctone para restaurar o “bom governo”. Da mesma forma, era preciso ser alguém que falasse o idioma espanhol assim como o quéchua, dos incas.
Grande parte da escrita no documento foi redigida em castelhano, afinal, para Ayala, era preciso que a Espanha o tivesse “por um dos seus mais fiéis súditos” (Cusicanqui, 2015, p.212). Na análise de Sílvia Cusicanqui, se o texto escrito por Poma de Ayala seguia uma retórica europeia, as imagens, por sua vez, adotavam outros códigos pautados em “estruturas pré-hispânicas de pensamento.”
Poma de Ayala utilizou relatos orais de comunidades indígenas para construir uma história dos primieros anos da colonização espanhola. Em suas narrativas visuais aparecem, por exemplo, o invasor Pizarro incendiando a casa de seus avós que foram queimados vivos ou um padre colério pisoteando a cabeça de um cacique.
Essa documentação, principalmente pela riqueza descritiva de suas imagens e pelas denúncias mostradas no cotidiano dos indígenas sob jugo colonial, é uma fonte preciosa para acessarmos outras perspectivas acerca do “mau encontro” colonial na América andina e nas Américas, em geral. São documentos que nos aproximam das “vozes” e dos “olhos” daqueles que por tantos anos tiveram seus registros silenciados e apagados.
*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do ProfSocio e coordenadora do imageH.
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Para citar esse texto:
BARBOSA, Cibele. O inca Poma de Ayala e os desenhos indígenas sobre a colonização espanhola. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
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Para saber mais:
CUSICANQUI, Silvia. Sociologia de lmagen. Miradas Ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón,2015.
LAGORIO, Consuelo Alfaro. Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán PomaNiterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007.
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