Notas sobre uma imagem centenária do Carnaval de Pernambuco
Por Rita de Cássia Araújo*
No ano de 1909, em 22 de fevereiro, uma Segunda-feira de Carnaval, o Jornal Pequeno trazia estampada na primeira página a ilustração ‘Olha o Frevo’¹. A imagem parece haver caído no gosto dos foliões, dos carnavalescos e do público leitor dos jornais; e, por astúcia de Momo, veio a cravar-se fundo na memória social e na história do Carnaval de Pernambuco.
Ao longo de mais de um século, esta representação imagética do Carnaval e do frevo em particular circulou em diversos meios e suportes, demonstrando rara vitalidade e capacidade de atualização dos sentidos e significados que lhe foram atribuídos ao longo dos anos. Mesmo sem realizar uma busca exaustiva, vamos reencontrá-la, por exemplo, no próprio Jornal Pequeno, na seção Revista de Momo, em 17 de fevereiro de 1912.
Recuperada na segunda metade do século XX, passou a figurar “em todos os convites e impressos do Baile da Saudade, evento criado em 1973 e que perdurou durante 18 anos” (SILVA, 2019, p 136). ‘Olha o Frevo’ ilustrou as capas dos cinco LPs que compõem a série Baile da Saudade, editada pela Fábrica de Discos Rozenblit Ltda. Anos depois, em 1991, ilustrou a folha-de-guarda do livro Antologia do Carnaval do Recife, organizado por Mário Souto Maior e Leonardo Dantas Silva, publicado pela Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco.
Não escapou ao extenso e minucioso levantamento documental realizado pelos organizadores do livro Frevo,100 anos de folia, publicado pela Timbro Editora, em 2007. Por último, no âmbito do processo de patrimonialização do frevo, a imagem dos alegres foliões burgueses bailando em luxuoso salão integrou a publicação do Dossiê Frevo, 14º volume da Coleção de Bens Culturais Registrados, editado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em 2016. Tal como Colombina a Pierrô, ‘Olha o Frevo’ parece desafiar o tempo, ilusionar olhares, acomodar pensares.
Tornou-se peça importante no processo de construção de uma determinada memória social sobre a festa carnavalesca — arriscaria dizer que de uma memória hegemônica —, em cujo rico substrato brotou, entre outras, a convenção de que o frevo surgiu em 9 de fevereiro de 1907.
Mas por que motivo neste 2022, segundo ano consecutivo em que Momo, devido à pandemia da Covid-19, não instalou seu reino folgazão no Brasil, trazemos de volta à cena a consagrada imagem ‘Olha o Frevo’? Por que problematizar uma representação tão longeva e cristalizada na memória social sobre o carnaval e o frevo pernambucanos?
Além da insistente recorrência, ‘Olha o Frevo’ nos inquieta por apresentar o que nos soa como visível assimetria ou distorção entre práticas socioculturais e representações simbólicas. A imagem mostra casais de afortunados burgueses — ou da “aristocracia do Recife”, de acordo com o cronista que assinava a matéria, Dominó Branco — divertindo-se em baile carnavalesco em elegante salão da cidade. São todas pessoas brancas e se vestem à europeia. As mulheres portam máscaras, em alusão direta ao modelo de Carnaval então considerado moderno, “higiênico”, ordeiro e “civilizado” pelas elites, autoridades públicas e formadores de opinião.
A festa que a elite letrada gostaria de ver plena e exitosa nos dias consagrados à folia e da qual sonhava ser sua representante exclusiva. Não bastasse a imagem, o texto que a acompanha atesta esta noção da festa, além de expressar um anseio de classe social e indiciar um projeto de nação.
Este ideal de festa carnavalesca de inspiração burguesa europeia distava longe, muito longe, do que se passava nas ruas do Recife durante as apresentações dos clubes e cordões animados por suas fanfarras e orquestras de instrumentos de corda.
O processo histórico de gestação do que viria a ser reconhecido como frevo nas primeiras décadas do século XX foi lento e complexo, remetendo aos anos de 1880 e 1890, tempo marcado pela abolição da escravidão e pela implantação do regime republicano no Brasil. Relacionava-se ao processo de formação das classes trabalhadoras urbanas livres, pobres e remediadas do Recife, afrodescendentes a maioria, a seus modos de vida e às suas referências culturais e relações estabelecidas com as demais raças e segmentos sociais (ARAÚJO, 1996; RIBEIRO, 2000; SILVA, 2009).
Em curto espaço de tempo, já 1909, a palavra ‘frevo’ encontrava-se bastante difundida, resultado em boa medida do trabalho da imprensa e principalmente do desempenho de Pierrot enquanto mediador cultural, fazendo a ponte entre as elites letradas e os poderes públicos constituídos e as camadas populares urbanas, criadoras de um modo de brincar o Carnaval inovador e singular.
Embora o uso da palavra ‘frevo’ não mais estivesse restrito a uma camada sociocultural específica, àqueles que criavam e realizavam frevolentas brincadeiras carnavalescas nas ruas do Recife, o mesmo não acontecia nem com a prática cultural em si — folias que causavam estranhamento e mesmo receio às elites e autoridades públicas, por as considerarem ameaçadoras à ordem pública e à imagem de povo culto e de nação progressista e civilizada —; tampouco com o seu significado, ainda muito novo, em ebulição, difuso, simbólica, social e politicamente bastante disputado. Como tivemos oportunidade de desenvolver em trabalho de pesquisa anterior,
“O frevo — palavra síntese das manifestações populares do Carnaval — era expressão das massas, das grandes aglomerações humanas, da multidão que habitava a cidade no início do século XX. Os membros da elite e dos grupos letrados construíram sua representação em cima de imagens metafóricos, onde sobressaíam-se as ondas volumosas, nuvens, formigueiro, trovão, torvelinhos, borbulho, marulho, ebulição, efervescência. A percepção de algo novo que crescera rápido e descontroladamente, misturava-se ao medo do desconhecido, do caos, de uma possível força destruidora inerente à multidão” (ARAÚJO, 1996, p. 382).
A associação entre a imagem dos aristocráticos foliões, divertindo-se em baile de máscara no Clube Internacional do Recife, e a expressão ‘Olha o Frevo’ seria mais um episódio na permanente busca de afirmação de poder e controle das elites letradas urbanas, que se autoidentificava branca e civilizada, sobre as diferentes raças e os demais segmentos sociais urbanos. A assimetria entre determinada prática cultural e sua representação imagética, que procuramos aqui ressaltar, atestaria a negação, por parte das camadas sociais dominantes, da participação das classes trabalhadoras urbanas como formadora do corpo legítimo da nação.
*Rita de Cássia Araújo é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
Notas
¹ Por muitos anos, atribuiu-se a Osvaldo de Almeida a criação da palavra “frevo”, juízo que muito se deveu a ele próprio que, em depoimento concedido ao Diario de Pernambuco em 23 de novembro de 1944, ao rememorar um desfile dos Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas ocorrido à frente do Jornal Pequeno entre 1908 e 1910, disse: “Observando a efervescência popular naquele momento, veio-me à mente, de supetão, como uma martelada, denominar aquela agitação de frevo. A palavra generalizou-se e dentro de poucas semanas estava na boca de todo mundo.”
Para citar esse texto:
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. “Olha o frevo”: uma imagem para pensar a história e as desigualdades sociais no Carnaval. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades
Para saber mais:
ARAÙJO, Rita de Cássia Barbosa. Festas: máscaras do tempo (Entrudo, mascarada e frevo no Carnaval do Recife). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1996.
RABELLO, Evandro. Osvaldo de Almeida: o mulato boêmio que não criou a palavra frevo. Diario de Pernambuco. Recife, 11 fev. 1990. Caderno Viver, Seção B. p. 01.
SANTOS, Mário Ribeiro de. Trombones, tambores, trompetes e ganzás: a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930-1945). Recife: SESC, 2000.
SILVA, Leonardo Dantas. Carnaval do Recife. 2 ed. revista e ampliada. Recife: Cepe, 2019.
SILVA, Lucas Victor. O Carnaval na cadência dos sentidos. Uma história sobre as representações das folias do Recife entre 1910 e 1940. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, 2009.
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