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Paulo Freire na África

Fotografias são reveladoras das relações do educador Paulo Freire com fatos da história da África na segunda metade do século XX e da sua influência nas ações voltadas para o combate ao analfabetismo em países africanos.


Por Cibele Barbosa*


Chegada de Paulo Freire na Guiné-Bissau. 1975. Acervo Memorial Paulo Freire.

Muitas imagens foram produzidas sobre a trajetória de vida de uma das personalidades mais conhecidas no mundo inteiro, patrono da educação do Brasil, o educador Paulo Freire. Uma parte importante dessa trajetória se passa no continente africano e, por essa e outras razões, não pode deixar de estar presente nos currículos escolares.


Paulo Freire, como muitos sabem, tem uma longa trajetória de educador. Nos anos 1950, havia participado do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRPE-RE), que funcionava no bairro de Apipucos, onde hoje está instalado um dos edifícios da Fundação Joaquim Nabuco. O núcleo regional estava ligado ao Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), sob a direção de Anísio Teixeira. Nesse tempo, Freire realizou a pesquisa “Vocabulário infantil de crianças de 7 a 12 anos em Pernambuco”.


Mas foi nos anos 1960 que suas ações despertaram e encantaram os olhares do Brasil e posteriormente do mundo. Paulo Freire fez parte de um grupo de intelectuais, estudantes, artistas e educadores convidados pelo então prefeito do Recife, Miguel Arraes, para iniciarem um programa de escolarização de crianças carentes. O Movimento de Cultura Popular (MCP), uma sociedade civil, foi criada em 1960 e era mantida pela Prefeitura de Recife sob o comando de Arraes. Em 1962, Paulo Freire foi para a pequena cidade de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, juntamente com o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, implantar um método revolucionário: a alfabetização, em 40 horas, de um grupo de 300 jovens e adultos do campo. O programa era revolucionário: em tempos de fortes desigualdades e exploração de trabalhadores do campo, o educador pernambucano sabia que o caminho para uma tomada de consciência ocorreria pela via de uma educação crítica. O método era tão promissor que até o presidente João Goulart viajou de Brasília à Angicos para ver de perto o projeto.


Nesse período, o método de Paulo Freire estava em vias de ser adotado em todo país. No entanto, o sonho de garantir cultura e educação para os mais desfavorecidos foi brutalmente estancado. A Ditadura Militar não só retirou do poder o presidente João Goulart como prendeu e forçou o exílio de figuras como o então prefeito do Recife Miguel Arraes, que foi para a Argélia, no norte da África, e Paulo Freire, que viveu até 1969 no Chile.


Ao decidir deixar o Chile, Freire recebeu convites para lecionar em universidades norte-americanas, incluindo a prestigiosa universidade de Harvard. Ao invés disso, preferiu aceitar o desafio de fazer parte do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, como consultor dos programas populares de educação da entidade, em suas ações de alfabetização de jovens e adultos em países africanos. A situação destes países era crítica: entre os que foram colonizados por Portugal, as taxas de analfabetismo atingiam estatísticas alarmantes. Para se ter uma ideia, a “Guiné portuguesa” apresentava menos de 2% da população alfabetizada, seguida por Moçambique e Angola, com apenas 3%.


Em suas leituras dos pensadores africanos, Freire considerava Samora Machel, líder da independência em Moçambique e Amílcar Cabral, líder da resistência ao colonialismo na Guiné e Cabo Verde, seus mestres. Cabral, em seus escritos, defendia a ideia de que a liberdade do jugo colonial não se dava apenas com a ruptura política: era necessário descolonizar as mentes, garantindo educação para o povo e uma reafricanização cultural.


Reprodução da capa da publicação "Mensagem ao povo de Moçambique"de autoria de Samora Machel.1974. Acervo Instituto Paulo Freire.

Ora, durante décadas, as metrópoles europeias desvalorizavam as culturas africanas, impondo um modelo cultural voltado para inferiorização do negro e enaltecimento do branco. As línguas locais eram proibidas. Modelos de beleza e padrões culturais eurocêntricos visavam situar os africanos sempre em posição inferior, às margens. Desse modo, para que as populações oprimidas conseguissem encontrar seu lugar no processo histórico e se empoderar era necessário ter acesso à alfabetização e à educação.


Embora de país e situação distintos de Amílcar Cabral, Freire entendia que ambos tinham uma crença em comum: a de que a educação teria um papel libertador e de que a tarefa do professor, mais do que ensinar a ler e escrever, consistiria em oferecer aos alunos “consciência crítica”.

Amílcar Cabral foi assassinado em 1973 e a independência de Cabo Verde e Guiné só foi reconhecida após a revolução dos Cravos, que derrubou o regime salazarista em Portugal.


Em 1976, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), seguindo os passos deixados por Amílcar Cabral, iniciou a Campanha Nacional da Educação e Alfabetização de Adultos, na qual Freire exerceu uma participação ativa. Em suas memórias acerca do seu trabalho na Guiné-Bissau, o educador, em uma perspectiva que hoje chamaríamos de decolonial, fez questão de destacar sua recusa a:


(...)qualquer tipo de solução ‘empacotada’ ou pré-fabricada; a qualquer tipo de invasão cultural, clara ou manhosamente escondida. A nossa opção política e a nossa prática em coerência com ela nos proibiam, também, de pensar sequer que nos seria possível ensinar aos educadores e educandos da Guiné-Bissau sem com eles aprender.

Durante cinco anos, Freire viajou dez vezes para a Guiné-Bissau. As fotografias presentes no Instituto Paulo Freire são bons testemunhos das diversas idas ao país. Também visitou seis vezes São Tomé e Príncipe, cinco vezes Angola e três vezes Cabo Verde. Esse capítulo importante da trajetória do educador brasileiro faz parte de uma história transnacional Brasil-África bem como ocupa um espaço de relevo na história da educação mundial em tempos pós-coloniais. A presença de Freire na África merece ser sempre lembrada no conjunto do legado que o brasileiro deixou na formação de milhares de pessoas no Brasil e no mundo, atraindo os olhares internacionais para o Sul global.

Entrevista de Paulo Freire na Guiné-Bissau. 1974. Acervo Instituto Paulo Freire.


Paulo Freire no 1º Seminário Nacional de Alfabetização de São Tomé e Príncipe. 1976. Acervo Instituto Paulo Freire.

O instituto Paulo Freire, em parceria com o Laboratório Multidisciplinar de Tecnologias Sociais (LMTS) da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), desenvolveu o Memorial Virtual Paulo Freire, onde é possível encontrar várias imagens, vídeos e documentos textuais que registram as diferentes fases e ações da vida do célebre educador. Algumas destas fotografias em solo africano atestam a importância de Paulo Freire e o seu empenho em levar a educação, como ele sempre dizia, para as “esquinas do mundo”. http://www.memorial.paulofreire.org/


*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do Profsocio e coordenadora do projeto imageH.

 

Para citar esse texto:

BARBOSA, Cibele. Paulo Freire na África. ImageH,2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.

 

Para saber mais:


FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.


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