O fascínio da desinformação visual e o ensino escolar como espaço para uma crítica às imagens
Por Cibele Barbosa*
Na era da modernidade tardia, do capitalismo neoliberal e de todos os rótulos que procuram tornar compreensível a sociedade atual, muitos autores são unânimes em diagnosticar os nossos tempos como de uma sociedade excitada, acelerada, cansada e algoritmizada. Documentários e best-sellers nos deixam a par de que somos, diante da tela dos smartphones, indivíduos “manipulados” por inteligências artificiais que, de posse de nossos dados (geolocalização, horários de consulta às redes sociais, buscas e interesses no Google), conseguem mapear nossos gostos e nossos pontos fracos com a finalidade de nos manterem presos às telas na maior parte do tempo, e assim nos fazer consumir compulsivamente sob um constante estado de alerta.
Uma outra forma de aprisionamento ocorre em meio ao “capitalismo emocional”, nas palavras da socióloga Eva Illouz. Empresas perceberam ― e não é de hoje ― que os gatilhos emocionais são o que despertam nosso interesse em ver ou consumir algo. Aplicativos como Spotify e Tik Tok ou games como Roblox, dentre outros, estão, na maior parte do tempo, trabalhando com nossos estímulos emocionais.
Como bem exemplifica um artigo recente na Folha de São Paulo, estamos cada vez mais interessados em imagens, vídeos e músicas, mas não pelos seus conteúdos, por quem os produziu, ou por sua história, e sim pelas sensações que nos provocam. Não é à toa que cada vez mais o Spotify faz listas musicais com critérios como “para relaxar”, “para estudar”, “para malhar”. Os vídeos que “bombam” no Tik Tok fazem pouca ou nenhuma referência aos seus autores ou não apresentam novos conteúdos, apenas velhos clichês recortados, editados, repaginados ou remixados. No mais das vezes, agradam porque despertam alguma enxurrada de sensações. Nessa sociedade “dopaminizada”, por assim dizer, o que importa mesmo é o efeito imediato, e não o que fica, o que se guarda na memória. Os conteúdos logo se tornam obsoletos e sem graça, e sua função, de modo geral, é efêmera e utilitária: excitar, animar, relaxar, afastar o tédio ou fazer rir.
Nesse modelo de sociedade, as ferramentas e o modo de manipulação ganham primazia sobre a produção de conhecimento: montagens, efeitos, contorções e distorções visuais, elaboração de avatares e de skins vão alimentando os prazeres de uma sociedade que está se habituando a usar, descartar e substituir, de forma muito rápida, o que se produz ― e as imagens estão incluídas nesse pacote. Ferramentas buscam sintetizar e tornar sempre mais coloridos, plásticos e palatáveis os conteúdos: simplificar, alterar, editar, resumir, facilitar e customizar, de modo a poder afetar mais as pessoas, provocar estímulos (visuais ou sonoros) e assim atingir o objetivo de despertar “interesse” e “obter engajamento”.
Muitos estão preferindo assistir a séries televisivas e não a filmes ― em muitos casos, em razão de serem produtoras de ansiedades em pequenas doses. O mérito consiste em gerar palpitações (medo, pânico etc.) e segurar o espectador. No campo visual, a lógica é semelhante. Sob esse ponto, as ferramentas digitais são as estrelas do momento, e os conteúdos e conhecimentos descem pelo ralo em meio à enxurrada informacional e sensorial.
Os professores, principalmente os que lidam com crianças e adolescentes, imersos no capitalismo dos estímulos emocionais, não estão imunes a também embarcar nesse flow. Frequentemente, no esforço genuíno de tentar conquistar a atenção, o foco e o engajamento dos alunos em relação às aulas, recorrem aos mesmos recursos que os atraem nas redes sociais. Assim, os modos de apresentação e exposição vão ganhando mais espaço do que a densidade ou a complexidade dos conteúdos. Nessa luta inglória, sabemos que crianças de 12 anos conseguem produzir vídeos bem mais divertidos e atraentes com a ajuda de aplicativos cada vez mais fáceis de uso. Se formos apenas por esse caminho, estamos não só endossando e reproduzindo o mesmo padrão de estímulos superficiais, mas deixando de aproveitar a maior ferramenta de que dispomos e que não está nos aplicativos: a capacidade de provocar a reflexão e o pensamento crítico.
Usamos as imagens, mas não quebramos o padrão. Será que as questionamos? Será que estamos produzindo conhecimento com elas?
Um ponto para que Ronaldo Lemos chama atenção em seu artigo é exatamente o desinvestimento no conhecimento sobre as obras artísticas ou a produção visual como um todo. Na cultura tik toker, o que mais importa é saber a reação das pessoas àquele vídeo ou imagem manipulada, e menos a sua origem ou as conexões históricas. Se a ideia é gerar sensações, afetar emocionalmente as pessoas com a produção e alegorias visualmente atraentes, o apelo emocional prevalece diante do racional.
Nesse sentido, é sintomático percebemos nas redes sociais a ausência de preocupação com “autoria, catalografia, créditos, arquivos ou qualquer coisa parecida”, como bem assinala o autor. De fato, a aceleração da “sociedade do cansaço”, somada ao fascínio da informação visual, gera um montante de recursos visuais que, em muitos casos, provoca muitas reações, mas poucas reflexões.
Recortes, manipulações e efeitos gráficos gerados para provocar respostas emocionais e engajamentos apressados, quando não problematizadas, reservam pouca margem para que a elaboração de pensamento crítico, construções memoriais e impressões duradouras se estabeleçam. Nessa prática de obtenção de informações aceleradas, muitos professores, inclusive, estão deixando de referenciar as imagens que escolhem e utilizam do Google Imagens, por exemplo. Com pouca visitação em sites de acervos e repositórios digitais, muitos estão sem tempo para conseguir pesquisar sobre as origens, o contexto ou os autores que as produziram, sequer buscando suas referências ou procedências. Com esta prática, as imagens perdem o elo histórico com as suas origens, com o meio em que foram produzidas ou com a obra de seus autores: despolitizam-se, "deshistoricizam-se".
As novas gerações pouco olham para as legendas ou procuram se aprofundar sobre a procedência ou origem daquilo que veem. Sucessão de pastiches, imagens descontextualizadas, recortes aleatórios, conclusões (quando há) imaturas, viram decoração fácil em edições para olhos apressados e sequiosos de estímulos visuais.
A repetição desse padrão esvazia o potencial de fato questionador e “empoderador” que as imagens podem suscitar. Se tomadas apenas ou prioritariamente como meio de afetos e emoções, sem o lastro reflexivo ou contextualizado, elas podem ser interessantes aos olhos, mas pouco libertadoras do ponto de vista social.
Como nos diz Byung-Chul Han, com base nas reflexões de Nietzsche, a incapacidade de hesitar aos estímulos invasivos e intrusivos é sinal de uma hiperpassividade, uma falta de liberdade. Nesse caso, nossas respostas mecânicas aos estímulos excessivos aos quais estamos submetidos nos tornam mais presos a uma cadeia coercitiva na qual temos a ilusão de liberdade, mas, de fato, estamos mais amarrados do que nunca à nossa pouca capacidade de hesitar, ponderar e raciocinar.
Sem a pausa reflexiva, sem o foco em conteúdo, sem a sedimentação na memória, sem a conexão com a história, sem conhecimento “acerca de”, os indivíduos consumidores das redes sociais se tornam alvos fáceis de manipulações digitais, muitas usadas largamente para fins políticos. Se ficarmos à deriva da iconosfera digital, sem instrumental crítico e sem o hábito de questionar e pesquisar sobre o que vemos, caímos nas armadilhas e estratagemas de recortes de imagens descontextualizados como os que foram intensamente utilizados em eleições recentes como forma de demonizar grupos sociais e, principalmente, espalhar fake news.
A sala de aula talvez seja um dos poucos espaços onde é possível quebrar padrões, exercer a pausa reflexiva, a discussão e o treino intelectual para aprender a questionar, pesquisar e problematizar o mundo visual e o universo das redes sociais, preparando indivíduos para a prática da autonomia. Para isso, a escolha e o poder de decisão e de pesquisa são exercícios importantes para evitar a passividade diante das sugestões algorítmicas. Essa postura ativa pode ser exercida por meio de iniciativas como visitas (virtuais ou presenciais) às bibliotecas, museus e acervos onde são disponibilizadas imagens com informações confiáveis; assim como o contato com estudos, pesquisas, textos e espaços formativos que envolvam o pensamento crítico acerca dos conteúdos visuais, principalmente aqueles difundidos no âmbito digital.
Nesse sentido, mais do que um ensino pautado na reprodução de tecnologias instrumentais, trata-se de promover um ensino de Humanidades que saiba analisar, questionar e lidar com as tecnologias de forma crítica e emancipadora. Essas ações possibilitam um diálogo com saberes acumulados e com novos conhecimentos que acionam vias mais reflexivas e respaldo científico ao trato das imagens, promovendo espaços de discussão e aparato crítico para a formação de indivíduos mais conscientes e reflexivos.
*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do Profsocio e coordenadora do projeto imageH.
Para citar esse texto:
BARBOSA, Cibele. Por que precisamos conhecer (e não somente ver) as imagens?. ImageH, 2021. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades.
Para saber mais:
CHUL-Han, Byung. Sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada. Filosofia da sensação. Campinas: editora da Unicamp, 2010.
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