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Um rosto para uma memória: Maria Felipa e a história da Independência

Neste primeiro texto da série Personagens negras da Independência apresentamos várias iniciativas contemporâneas para representar visualmente Maria Felipa de Oliveira, mulher negra, marisqueira da praia de Itaparica, imortalizada na memória popular como uma liderança que contribuiu para a expulsão dos portugueses na Bahia durante as guerras de Independência, entre 1822 e 1823.


*Por Cibele Barbosa



Fotografia modificada digitalmente a partir da fotografia original " Mulher de turbante", de autoria do fotógrafo Alberto Henschel, circa 1870. Arte de Mariana Gomes. A fotografia não é de Maria Felipa: trata-se de uma apropriação da imagem para fins ilustrativos.

Até pouco tempo, muito pouco se lia nos livros sobre Maria Felipa de Oliveira, mulher negra, baiana, marisqueira de Itaparica, que viveu no século XIX( ?-1873). Até mesmo em publicações de referência como dicionários históricos mais conhecidos, não há informações sobre Felipa. O mesmo, porém, não pode ser dito quando o nome de Felipa é mencionado nas ruas da Bahia, mais ainda na cidade de Itaparica. Logo que se chega ao local, o visitante encontra várias referências ao seu nome, tanto em estabelecimentos comerciais como em locais turísticos. Felipa é tida pela população local como uma heroína que ajudou a expulsar os portugueses da região e consolidar a independência na Bahia, em 1823.


Como mulher negra que viveu nos tempos da escravidão, sua história não foi contada nos documentos escritos nem oficiais. Aliás, quantas mulheres e homens do povo participaram de acontecimentos históricos, porém sem menção aos seus nomes e feitos? No entanto, nos registros da memória popular, alguns destes desafiaram o tempo e as instituições e continuaram na boca daqueles que não deixaram morrer suas lutas e trajetórias.


Em razão de serem histórias contadas pela tradição oral, há diferentes versões sobre essa heroina. No entanto, alguns aspectos são convergentes : Maria Felipa viveu nos tempos das guerras de consolidação e independência na Bahia, era marisqueira e foi uma liderança da resistência baiana aos portugueses.


Por não figurar em documentos oficiais, Felipa não foi muito levada a sério pelos historiadores de outros tempos que julgavam necessitar de provas escritas, oficiais, para atestar a “veracidade” dos fatos. Porém, ela existia nas histórias que os mais velhos contavam, estando viva como heroína negra popular. Foram escritores os que primeiros se interessaram em citar Maria Felipa: Ubaldo Osório Pimentel, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro, em sua obra A ilha de Itaparica: história e tradição, e o escritor baiano Xavier Marques, no seu livro Sargento Pedro, que a insere como um dos personagens do livro de ficção.


À medida que a prática dos historiadores se voltou para a importância das tradições orais como uma chave de compreensão do passado e para a importância das histórias de personagens “esquecidos” das narrativas e documentos oficiais, Maria Felipa passou a despertar o interesse de estudiosos interessados em obter mais informações sobre sua vida. A pesquisadora Eny Kleyde Vasconcelos Farias encontrou a certidão de óbito de Felipa, que data de 1873. A marisqueira baiana é descrita, de modo geral, como uma mulher jovem, provavelmente descendente de pais sudaneses. A ex-escravizada liberta teria atuado como líder de um grupo de mais de 40 populares, majoritariamente mulheres, que fizeram trincheiras na praia e “deram uma surra” na tripulação das embarcações portuguesas que queriam aportar no local e tomar o bastião da ilha de Itaparica. Também há descrições de que Maria Felipa, juntamente com outras mulheres negras, saíam de barco pelo rio Paraguaçu levando mantimentos para as cidades resistentes à ocupação portuguesa. Apesar de pesquisadoras como Kleyde e Lívia Prata terem se dedicado a recolher e compilar narrativas sobre Felipa, algumas provenientes de comunidades remanescentes de quilombos do recôncavo Baiano, não foram encontrados documentos específicos que, de fato, atestassem esse acontecimento.


Mas o que é inegável é o fato de que o nome de Felipa tem um papel central nas narrativas populares sobre a Independência na Bahia e ocupa um papel importante na construção de identidades negras. Pelo fato de sua história ser contada e recontada por diferentes grupos e gerações, ela exerce um papel importante como um símbolo de participação popular feminina nas guerras de independência (1822-23).


Em 2004, Maria Felipa passou a ser reconhecida como personagem histórica e a integrar as comemorações do 2 de julho, na Bahia. Essa comemoração cívica naquele estado decorre do fato de que foi nesta data, no ano de 1823, que as tropas portuguesas deixaram definitivamente a Bahia.


O fato de o nome de Maria Felipa ter sido incluído nas comemorações da Independência baiana tem relação direta com as ações de implementação do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, com a aprovação da lei 10.639, de 2003, que instaurou a obrigatoriedade desse ensino nas escolas. Essa e outras ações afirmativas engendraram pesquisas que buscaram identificar e propagar ações e histórias de personagens negras outrora esquecidas pela historiografia. Como bem apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:



O ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira, se fará por diferentes meios, inclusive, a realização de projetos de diferentes naturezas, no decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil, na construção econômica, social e cultural da nação, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social. (Diretrizes, MEC, 2004)


Na esteira dessas mudanças, Maria Felipa foi ganhando espaço não só nos conteúdos escolares e nos festejos cívicos como foi incorporada a outras estratégias de afirmação e luta de pessoas negras e nas lutas pelos direitos das mulheres. Em 2004, por exemplo, foi criado o Centro de visitação, estudos, pesquisas e empreendimentos étnico-culturais – Casa de Maria Felipa, por integrantes da família Virgens (Hilda, Clarinda e Virgínia). Situado em Salvador, o espaço tem se destacado na promoção da memória de Maria Felipa por meio de ações educativas e culturais.


Desse modo, para que essa história, presente na tradição, não esmorecesse ou desaparecesse, foi preciso criar um rosto, uma imagem que correspondesse à figura de Maria Felipa. Principalmente para as novas gerações, a imagem ocupa um papel importante nas narrativas e, por esta razão, é possível constatarmos diferentes estratégias e iniciativas para tornar “visível” essa personagem. Uma das formas de materializar Felipa para os olhos foi imaginá-la a partir das histórias sobre ela contadas. Uma imagem bastante veiculada nas redes sociais é o “retrato falado” desenvolvido pela artista e perita técnica Filomena Orge, em 2005.



Mais recentemente, a monografia de conclusão do curso de Comunicação Visual da designer Lívia Prata Silva buscou tecer uma pesquisa de referências iconográficas para uma elaborar uma história ilustrada de Maria Felipa. Em seu livro, Lívia imaginou Felipa como uma “figura impactante”:


alta, corpulenta, energética. Costumava usar batas bordadas na cor branca, saias rodadas, turbante, torço e chinelas. Quando necessário, amarrava a saia nas pernas e lutava com golpes de capoeira. Era comum vê-la com os cabelos revoltos, a camisa descaída e as costas lavadas de suor agitando-se à frente da turba. (Lívia Prata, 2018)

Lívia Prata, Maria Felipa, uma heroina baiana, 2018. Foto de capa disponível em: https://liviaprata.com.br/maria-felipa

Outras ilustrações mais voltadas ao público infanto-juvenil foram elaboradas, a exemplo do livro Maria Felipa, força e poesia, da professora e escritora Márcia Mendes, ilustrado por Rafael Souza, e do site do projeto Plenarinho, um programa educativo da Câmara dos Deputados voltado para crianças de 7 a 14 anos, pais e professores.





Ilustração do site do Projeto Plenarinho (Câmara dos Deputados). Disponível em https://plenarinho.leg.br/index.php/2021/12/maria-felipa-de-oliveira/


Além destas, houve aquelas inciativas que preferiram se apropriar da fotografia de uma mulher negra desconhecida, para “ incorporar” a personagem de Maria Felipa. No caso, trata-se de um retrato apenas definido como "mulher de turbante", produzido no século XIX pelo fotógrafo Alberto Henschel. Essa fotografia, aliás, também é comumente utilizada para representar outras personagens históricas negras como Luiza Mahin e Dandara. O uso dessa imagem para ilustrar reportagens e histórias de Maria Felipa pode ser encontrado em capas de revistas, sites e postagens de redes sociais. Na maioria dos casos, são elaboradas colagens e outras intervenções artísticas para acentuar o caráter ilustrativo e didático da fotografia.Muitas vezes, o uso dessa fotografia sem uma contextualização leva muitos professores a considerarem-na como retrato da Maria Felipa histórica. Embora a iniciativa seja importante como meio de “dar um rosto” e agência à personagem histórica, é importante deixar claro o porquê desta escolha criativa.



Mulher de turbante. Fotografia de Alberto Heschel, circa 1840. Instituto Moreira Sales.

Capa da revista Aventuras na História. Março de 2021.

Print do poster no Twitter do Fundo Baobá, organização sem fins lucrativos para promoção da equidade racial.

Em 2019, o professor do Departamento de Artes da UFBA, o artista Mike Sam Chagas elaborou o quadro Alegoria ao 7 de Janeiro, retratando a famosa batalha que expulsou os portugueses de Itaparica. No quadro, o artista elaborou a representação de Maria Felipa, como figura central da imagem, segurando uma tocha, liderando outra mulheres negras, marisqueiras como ela, pescadoras. Na cena também estão mulheres indígenas, uma mulher vestida de soldado, a exemplo de Maria Quitéria além de outros personagens anônimos do povo. O uso do termo alegoria, deixa claro para os espectadores sobre a simbologia e a escolha do autor em dar protagonismo àqueles e àquelas que foram negligenciados das outras alegorias e produções visuais “oficiais”.


Mike Sam Chagas. 'Alegoria ao 7 de janeiro de 1823'. Fonte: @instaparica

No caso destas imagens serem trabalhadas em sala de aula, é importante os professores frisarem as origens e as apropriações realizadas na elaboração desse material, deixando claro que são narrativas, licenças poéticas que, nos casos citados, buscam dar um rosto àquelas e àqueles que foram invisibilizados.


Esse é um exercício interessante para que os alunos compreendam que as imagens, de modo geral, na medida em que são criações, podem ser recriadas, remodeladas, reapropriadas, mas sempre deixando claras essas ações e as razões para isso. Nesse sentido, é sempre salutar situar uma imagem em seu contexto, pesquisar sobre quem e quando foi produzida. Esse trabalho, às vezes negligenciado em publicações, redes sociais e internet, tira do espectador a possibilidade de construir julgamentos e percepções com informações seguras sobre o que está vendo e, assim, poder construir percepções, escolhas e julgamentos com maior base e autonomia.


É importante frisar que imagens não são estáticas, nem são verdades absolutas e muito menos registros passivos: elas expressam desejos, sentimentos e escolhas e, portanto, são criações, imaginações. Até mesmo a pintura “oficial” de Pedro Américo (1888), sobre o Grito do Ipiranga, é uma criação e não um espelho do ocorrido. Criação, aliás que excluiu o povo daquele cenário, em especial as populações negra e indígena. Analisar a gênese das imagens, seus processos de produção, validação social e circulação é um exercício que habilita os alunos a não naturalizarem as imagens do passado, mas perceberam-nas como narrativas que muito dizem sobre quem as produziu, para que, para quem e quando foram produzidas, habilitando-os a analisar criticamente essas imagens, entendendo os processos de esquecimentos e de invisibilidades.


De posse dessas reflexões, os alunos podem não somente elaborar análises críticas das imagens que nos foram legadas, como podem construir suas próprias versões visuais da história, produzindo representações e imagens que forneçam rosto a vidas e personagens outrora invisíveis, desconstruindo estereótipos, trazendo à tona os esquecidos. Assim como fizeram Lívia Prata, Rafael Marques, Mike Sam Chagas e tantos outros aqui citados, que tal perguntarmos aos nossos alunos como eles imaginariam Maria Felipa , que imagem produziriam acerca de sua história?



*Cibele Barbosa é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, professora do ProfSocio e coordenadora do imageH.

 

Para citar esse texto:


BARBOSA, Cibele. Um rosto para uma memória: Maria Felipa e a história da Independência. ImageH, 2022. Disponível em: https://imagehmultihlab.wixsite.com/humanidades

 

Para saber mais:



VASCONCELOS, Any Kleyde Farias. Maria Felipa de Oliveira. Heropina da Independência da Bahia. Salvador: Editora Quarteto, 2010.


STARLING, Heloisa; PELLEGRINO, Antonia (orgs.). Independência do Brasil. As mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Vazar do tempo, 2022.




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